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26.11.2024 Pesquisa clínica

Estudos clínicos mais centrados nos pacientes

Tecnologias digitais ajudam a aumentar diversidade de pacientes em testes clínicos e acelerar o desenvolvimento de novos medicamentos e terapias

O Brasil já realizou mais de 10 mil estudos clínicos, liderando na América Latina com 42% do total de ensaios, mas representando apenas 2% no cenário global, de acordo com a base de dados ClinicalTrials.gov | Imagem: Shutterstock

Nos últimos anos, os chamados estudos clínicos descentralizados (DCT, na sigla em inglês) ganharam força com a proposta de transformar o modo como as pesquisas médicas podem ser conduzidas.

Diferentemente dos ensaios clínicos tradicionais – em que todos os processos são centralizados nos centros de pesquisas – as abordagens descentralizadas têm potencial de romper barreiras geográficas e ampliar o acesso de pacientes a estudos que avaliam a segurança e a eficácia de novos medicamentos e de tratamentos de doenças.

Isso graças ao uso cada vez mais destacado de plataformas digitais para gerenciar os estudos, permitindo que os pacientes participem sem sair de casa.   

Tal abordagem pode contribuir para reduzir os custos de testes clínicos, aumentar a diversidade étnica dos voluntários e agilizar a coleta de dados.

Mas como garantir segurança, qualidade e adesão de participantes em um cenário relativamente incipiente em escala global?

Especialistas ouvidos pelo Science Arena destacam os desafios e os avanços que estão moldando o futuro da pesquisa clínica no Brasil e no mundo.

Marcos regulatórios

A pandemia de covid-19 contribuiu para uma maior difusão do conceito de estudos clínicos descentralizados, e até na implementação de novos componentes de acesso para facilitar a participação de pacientes que se engajam em testes de potenciais novos tratamentos.

A realização de adaptações na regulamentação, a fim de aceitar processos de descentralização, também foi outro ponto a favor para que testes clínicos continuassem mesmo com os lockdowns e as restrições de deslocamento impostos pela pandemia.

“Na época, tivemos regras que tornaram menos rígido o acesso de pacientes aos estudos clínicos descentralizados, o que não acontece mais hoje em dia”, explica Fernando de Rezende Francisco, diretor-executivo da Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (Abracro).

De acordo com ele, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou resoluções durante a pandemia viabilizando o andamento de pesquisas clínicas pontuais, para que a medicação testada chegasse até a casa do participante, incluindo consultas remotas.

“No entanto, com o fim da pandemia, as agências reguladoras entenderam que o mercado, ou até elas mesmas, não estavam ainda cem por cento preparadas para analisar e se adaptarem a essas regras em uma rotina normal”, esclarece Francisco.

Ele ressalta que há forte pressão, por parte de empresas especializadas em testes clínicos, para que os estudos sejam conduzidos mais rapidamente, ampliando a participação de pacientes e, assim, podendo aumentar o índice de retenção de voluntários.

“Se, por um lado, o potencial brasileiro é impulsionado pela diversidade genética, por outro a regulamentação reduz o ritmo de aprovação de estudos, fator essencial para atrair mais pesquisas multicêntricas internacionais”, afirma Francisco.

Além disso, diz o porta-voz da Abracro, estima-se que os avanços regulatórios possam trazer impactos econômicos significativos, “com potencial de gerar investimentos diretos da ordem de R$ 3 bilhões por ano.”

Caminho promissor

“Ainda estamos aprendendo a fazer estudos descentralizados no Brasil e no mundo”, pondera a médica cardiologista Karla Espírito Santo, líder de Estudos Descentralizados e Novos Modelos de Pesquisa Clínica da Academic Research Organization (ARO) do Hospital Israelita Albert Einstein.

“Em casos específicos de fases de estudo para aprovação de novas medicações, em que o controle é mais restrito, as agências regulatórias ainda estão se adaptando e liberando guidelines para auxiliar neste processo e manter o alto padrão dos testes clínicos”, explica a pesquisadora.

Inspirada em instituições de pesquisa internacionais, a ARO-Einstein realiza atividades que abrangem toda a gestão de um projeto de pesquisa clínica, desde o planejamento das etapas do estudo – com o desenho do protocolo e o processo de aprovação regulatória –, passando pela condução do estudo até a análise estatística.

A ARO também divulga os resultados através de apresentações em congressos médicos nacionais e internacionais, em publicações de revistas científicas de alto impacto.

Desafios logísticos

Outro desafio para a realização de mais estudos clínicos descentralizados no Brasil é a dificuldade na logística de entrega de medicamentos, relata a biomédica Laura Melgarejo-Herrera, diretora de Desenvolvimento de Negócios da América Latina da Care Access, empresa norte-americana especializada em pesquisa clínica descentralizada.

“O Brasil é um país continental e, por isso, temos avançado na otimização da capilaridade da rede de saúde e na logística de distribuição de insumos aos centros de pesquisa e seus participantes, principalmente em regiões remotas e de difícil acesso às instituições científicas”, explica Melgarejo-Herrera.

Para ela, o modelo descentralizado pode ser uma ferramenta poderosa em países como o Brasil e na América Latina em geral. “Não apenas porque permite identificar populações diversas, com potencial para participar de ensaios clínicos, como também pelo fato de ajudar a expandir o acesso a tratamentos inovadores.”

“O uso da inteligência artificial e de sistemas integrados em tempo real é um aliado nessa missão”, avalia Melgarejo-Herrera. Além disso, diz ela, tais tecnologias proporcionam melhoria na qualidade de dados dos estudos, “tendo o paciente sempre no centro e no foco da nossa atenção.”

O uso cada vez mais destacado de plataformas digitais para gerenciar estudos permite que os pacientes participem de ensaios clínicos sem sair de casa | Imagem: Shutterstock

Herrera conta que, por meio de sua rede de centros de pesquisa e unidades móveis, a Care Access consegue identificar potenciais participantes de estudos clínicos, buscando assegurar uma maior representação de pacientes. 

Essa abordagem visa acelerar a aprovação de novas terapias e ampliar as opções de tratamento para mais pacientes. “A descentralização também pode ajudar a elevar os padrões de qualidade na pesquisa clínica e aumentar a diversidade étnica entre os participantes”, ressalta a biomédica.

Entraves tecnológicos

Barreiras tecnológicas são outro percalço para aumentar o número de participantes em estudos clínicos descentralizados, principalmente na população com baixa escolaridade e nos mais idosos. 

“Tecnologias desenvolvidas ao longo das últimas décadas nos auxiliam neste processo, mas a falta de “letramento” dos participantes dificulta a adesão”, sublinha Karla Espírito Santo, do Einstein.

“Os participantes até têm smartphone, sabem usar aplicativos de mensagens, mas muitas vezes não conseguem baixar um novo aplicativo sozinhos. Às vezes, nem mesmo com o auxílio remoto.”

Aumentar a oferta de estudos descentralizados nesta parcela da população – com baixo letramento digital ou mesmo excluídos do mundo digital – pode estimular a criação de novas iniciativas voltadas à inclusão.

Estratégias de adaptação para o uso de tecnologias como o WhatsApp, para facilitar o preenchimento de formulários e enviar vídeos explicativos; ou ainda a criação de um chat para a resolução de problemas pontuais tecnológicos, também fazem parte dos planos dos pesquisadores do Einstein, informa Espírito Santo. 

“Também é preciso garantir que a parte técnica esteja sempre atualizada, a fim de evitar ou contornar mais rapidamente certos ‘bugs”, diz a pesquisadora.

“Segmentar o uso de tecnologias para determinados grupos de participantes é outra saída”, sugere Espírito Santo.

“Por exemplo, definir que um grupo de participantes mais familiarizados com as novas tecnologias fica responsável por operar o aplicativo, enquanto outro grupo pode trocar informações por contato telefônico”, propõe.

Para a médica Julia Machline, chefe de assuntos médicos da startup epHealth, essa é uma questão meramente cultural, e não efetivamente um obstáculo. “Não existe uma receita de bolo para todos os países. Existem nuances que devem ser analisadas. Por exemplo, no Reino Unido, o método de comunicação mais utilizado é o SMS ou a ligação por telefone, não o WhatsApp, como ocorre no Brasil.”

 A pesquisadora brasileira, que mora em Londres, conta que também é voluntária de um estudo descentralizado. Trata-se do Our Future Health, estudo observacional em larga escala conduzido no Reino Unido, com o objetivo de melhorar a prevenção cardiovascular da população.

Machline se inscreveu pelo site, recebeu correspondência do Sistema Nacional de Saúde Britânico (NHS) com um formulário a ser preenchido com dados de seu histórico de saúde e informações de seu estilo de vida.

A coleta de amostras, como sangue, medidas de peso e verificação de pressão arterial, foi realizada próximo de sua casa, em uma farmácia conveniada, que por sua vez enviou os resultados para o sistema público de saúde.

“Não tive contato direto com nenhum pesquisador”, relata Machline. “Foi bem interessante ter essa visão de participante de um teste clínico, e não somente de pesquisadora.”

Espaço para crescer e diversidade étnica

De acordo com dados da Abracro, mais de 10 mil estudos clínicos são realizados no Brasil, o que representa 42% do total na América Latina. Embora lidere regionalmente, o país representa apenas 2% das pesquisas clínicas no cenário mundial.

Com uma população multiétnica que ultrapassa a marca de 200 milhões de habitantes, e com diferentes tipos de clima, o Brasil é um país com enorme potencial para conseguir se tornar referência em pesquisas clínicas.

Recentemente, foi aprovada a Lei nº 14.874 de 2024, que estabelece um novo marco regulatório para pesquisas clínicas com seres humanos por instituições públicas e privadas, trazendo avanços significativos para a área.

“A expectativa é que, em 2025, essa fatia comece a crescer e, talvez, em três a cinco anos, possamos chegar a 5% das pesquisas clínicas realizadas globalmente, ficando entre os dez principais países do mundo”, projeta Francisco, da Abracro.

“O Brasil acaba sendo um grande celeiro de pesquisas clínicas por conta da sua diversidade étnica e miscigenação genética.”

A diversidade étnica e cultural é, sem dúvida, a “menina dos olhos” das pesquisas clínicas no Brasil.

Sabe-se que grande parte dos estudos clínicos publicados hoje apresenta, pelo menos, 65% de participantes brancos caucasianos.

Em contrapartida, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, Censo de 2022) apontam que mais de 45% da população brasileira é formada por pessoas que não se declaram brancas. 

E a necessidade urgente de aumentar a participação de pessoas indígenas, pardas e negras em ensaios clínicos transforma o país em um verdadeiro “celeiro” da diversidade étnica nas pesquisas clínicas.

Esses grupos, historicamente sub-representados em pesquisas científicas no Brasil e no mundo, enfrentam barreiras de acesso e inclusão que limitam a diversidade dos dados encontrados.

Portanto, a ampliação da participação desses grupos é fundamental para garantir que os resultados dos estudos clínicos sejam mais representativos da realidade da população como um todo.

Ademais, o aumento dessa participação pode melhorar a eficácia de tratamentos e intervenções para diferentes etnias, considerando as particularidades genéticas e socioeconômicas de cada grupo.

A ampliação dos critérios de inclusão, que costumam deixar de fora os maiores de 60 anos, dificultando o acesso dos mais idosos às pesquisas (o que também acontece com a comunidade pediátrica), é mais um ponto que precisa ser revisto dentro dos estudos.

“A ideia é justamente aumentar a diversidade de participantes em pesquisas clínicas. E não somente dentro da pequena parcela de pacientes que já frequenta os centros de pesquisas”, reforça Karla Espírito Santo.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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