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Diplomacia científica em uma era de disrupção

No contexto geopolítico em transformação, empresas privadas agem como entidades supranacionais, modulando políticas segundo interesses corporativos

Empresas são participantes de primeira grandeza no mundo da diplomacia científica, que tradicionalmente tinha apenas representantes de governos (diplomatas) e cientistas do meio acadêmico | Imagem: Hunter Scott / Unsplash

Na cultura popular latino-americana, a celebração de 15 anos é usualmente um acontecimento festivo. Com raízes em notáveis civilizações pré-colombianas, que assim marcavam a entrada de jovens na puberdade, essa ocasião recebe nos países de língua espanhola o sugestivo nome de quinceañera.

Contrastando com o ambiente esfuziante habitual nessas circunstâncias, foi sóbria a comemoração dos 15 anos da emissão do documento New frontiers in science diplomacy, ocorrida durante o recente encontro anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS).

Esta importante entidade é irmã bem mais velha da nossa Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – a diferença é de exatos cem anos.

Não foi por falta de mérito. A referida publicação conjunta da AAAS e da Royal Society britânica se tornara uma referência conceitual para o aproveitamento de conhecimentos científicos nos esforços cooperativos de enfrentamento de problemas que nenhum país é capaz de resolver sozinho.  

Entre eles estão desafios definidores do bem-estar de bilhões de pessoas neste século, como os de recuperação da saúde planetária, de preservação da segurança alimentar e de proteção da dignidade humana em face de totalitarismos potencializados por inovações tecnológicas.

A propósito desses, nos tempos atuais, em que se discute o uso problemático de sistemas de reconhecimento facial, cabe lembrar o papel das então avançadas tecnologias de tabulação e processamento de dados na operacionalização dos desígnios sinistros do regime nazista.

O primeiro passo foi a realização de um censo nacional, instrumentalizado como mecanismo para a identificação de judeus (caracterizados segundo a definição do partido nacional-socialista), de romani (conhecidos pelo exônimo de ciganos) e de outros grupos étnicos considerados indesejáveis ​​pelo regime.

Os lucrativos negócios acertados pelo governo alemão com a então líder global nesse ramo prosperaram também em países europeus ocupados, tendo a aparentemente anódina tecnologia hollerith (popularizada entre nós pelos antigos holerites do salário) facilitando às forças do mal a localização e captura em massa de pessoas-alvo, assim contribuindo para a tecnificação do genocídio.

Contexto adverso

A expectativa otimista, anunciada na introdução do documento original de 2010, de ampliação das fronteiras da diplomacia da ciência, capazes de “criar um novo papel para a ciência na formulação de políticas e diplomacia internacionais… para colocar a ciência no centro da agenda internacional do progresso”, tem se defrontado com uma realidade crescentemente desfavorável.

De fato, apenas 15 anos depois, “o contexto geopolítico é cada vez mais adverso, o poder é mais amplamente distribuído e as relações entre as principais potências tornaram-se mais competitivas”, como salienta o documento Science diplomacy in an era of disruption, lançado no mencionado encontro, novamente em coedição da AAAS e da Royal Society.

Aponta como outros fatores disruptivos os rápidos avanços tecnológicos, como os que ocorrem no campo da inteligência artificial, assim como a ascensão de atores não estatais, incluindo “titãs da tecnologia”.

Essas mudanças constrangem as bases da cooperação construtiva, ideal que presidia a confluência da ciência e da diplomacia.

Numa visão realista, a nova estrutura enfatiza ser a diplomacia da ciência uma ferramenta usada para atingir os objetivos diplomáticos de uma nação ou organização, objetivos que podem ser percebidos como positivos ou negativos.

Nessa linha, vêm se avolumando as pressões públicas e dissimuladas, que por vezes beiram à coação, relacionadas a supostos riscos para a segurança nacional em colaborações científicas internacionais.

A hipersensibilidade a tais riscos afeta não apenas a cooperação mundial na pesquisa, como também a mobilidade de pesquisadores e estudantes de instituições de ensino superior em áreas da ciência consideradas sensíveis.

Diplomacia não estatal

O novo documento amplia o cenário do anterior, ao incluir no escopo o uso da diplomacia por atores não-estatais, em particular do meio empresarial. As firmas a utilizam para promover seus interesses comerciais, em particular quando estão envolvidas inovações de cunho tecnológico.

Um número pequeno, mas crescente de empresas privadas, que comandam ativos vultosos, agem como entidades supranacionais, modulando as suas presenças nacionais de acordo com os interesses corporativos.

A influência política desses “titãs da tecnologia” tem levado alguns deles a manterem uma equipe permanente nas cidades que são sede de organismos multilaterais, como Nova York, Paris, Genebra, Washington e Bruxelas.

Sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, na Suíça: conhecimentos científicos podem ser mais bem aproveitados nos esforços cooperativos de enfrentamento de desafios globais, como recuperação da saúde planetária e proteção da dignidade humana | Imagem: Hugo Magalhães / Pexels

Em contrapartida, nações passaram a estabelecer representações nas “capitais da tecnologia”, em especial no Vale do Silício, além de expandir adidâncias ou setores de ciência, tecnologia e inovação nos postos diplomáticos existentes.

O cada vez maior movimento internacional de dados e a aceleração da presença de plataformas globais têm exacerbado embates entre diferentes sistemas de valores enraizados na sociedade humana.

É o caso da priorização da proteção de dados (Europa), do controle das manifestações divergentes da linha oficial (China) e do asseguramento da liberdade de expressão (Estados Unidos).  

Outra alteração expressiva nos parcos 15 anos transcorridos entre as duas publicações referenciais da diplomacia científica é o fato de o setor privado ter passado a ser um grande financiador de esforços em ciência básica e em suas aplicações em muitos países.

As maiores empresas de tecnologia da informação investem dezenas de bilhões de dólares cada uma em pesquisa e desenvolvimento (P&D) com enfoque no avanço das fronteiras do conhecimento em áreas como inteligência artificial e tecnologias quânticas.

Um resultado eloquente desses investimentos é o fato de dois pesquisadores de um desses “titãs” integrarem o trio contemplado pelo prêmio Nobel de Química de 2024 (o terceiro, como de hábito, é um pesquisador vinculado a uma universidade).

O par de pesquisadores empresariais, cujo laboratório está num país que não é sede mundial da corporação, desenvolveu um modelo de inteligência artificial que conseguiu prever a estrutura de praticamente 200 milhões de proteínas. Desde sua descoberta, o modelo já foi usado por mais de dois milhões de pessoas de 190 países.

“Entre uma miríade de aplicações científicas, os pesquisadores agora podem entender melhor a resistência a antibióticos e criar imagens de enzimas que podem decompor o plástico”, justifica o anúncio da Academia Real de Ciências da Suécia.

Diplomacia da inovação

O fenômeno descrito torna as empresas participantes de primeira grandeza no mundo da diplomacia científica, que tradicionalmente tinha apenas representantes de governos (diplomatas) e cientistas do meio acadêmico.

Quem estuda o campo das políticas voltadas ao favorecimento da ciência, da tecnologia e da inovação reconhecerá a emergência do profícuo formato da Hélice Tríplice.

Há situações, porém, em que grandes corporações entendem que estão em um plano que transcende governos, como temos testemunhado em controvérsias recentes.

As evoluções nesse fascinante campo vêm sendo acompanhadas de perto pela São Paulo Innovation and Science Diplomacy School (InnSciD SP), uma iniciativa criada em 2019 na Universidade de São Paulo (USP), inicialmente como uma Escola São Paulo de Ciência Avançada da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Naquele ano, a Escola introduziu conceitos e abordagens inovadoras, estruturadas em dois eixos principais: diplomacia científica e diplomacia da inovação.

Além disso, expôs grandes infraestruturas de pesquisa no estado de São Paulo a um grupo de 100 jovens pesquisadores, sendo metade brasileiros e metade estrangeiros.

A Escola passou a ser oferecida anualmente, alternando entre formatos virtual e presencial, sempre com parceiros estratégicos.

A cada edição um tema global crítico é escolhido para ser analisado sob a perspectiva da diplomacia científica e da inovação, com a contribuição de especialistas e agentes nacionais e estrangeiros  

A edição mais recente da InnSciD SP, realizada em 2024, teve dois segmentos:

Foram exploradas, sob perspectivas diplomática, acadêmica e empresarial, formas de o Brasil e países assemelhados participarem ativamente na formulação de regulamentações e regimes internacionais que ajudem a mitigar as assimetrias tecnológicas, em um cenário geopolítico em transformação vertiginosa.

Guilherme Ary Plonski é professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), do qual foi diretor. Foi diretor superintendente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), presidente da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec) e coordenador científico do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica da USP. Membro Titular da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP), é pesquisador-emérito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Integra o Comitê de Pesquisa e Inovação do Hospital Israelita Albert Einstein e é membro da Junta de Governadores do Technion – Israel Institute of Technology.

Retrato: Leonor Calasans/IEA-USP

 

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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