
Sofrimento psíquico na academia: Os dilemas enfrentados por jovens pesquisadores e a esperança de que outra forma de ver e viver a academia seja possível
O desafio de construir um ambiente acadêmico mais acolhedor e inclusivo, onde a saúde mental dos jovens pesquisadores seja uma prioridade

Esta é a terceira e última reportagem de uma série publicada pelo Science Arena. Ela resulta do trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado por Eduarda Antunes Moreira, sob orientação do professor Ricardo Whiteman Muniz, na especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp). Leia aqui a primeira e aqui a segunda reportagens da série.
Ao ingressarem na pós-graduação stricto sensu (direcionada à carreira acadêmica), muitos jovens se deparam com um ambiente adverso, que geralmente se manifesta na pressão para publicar artigos em revistas de impacto, na carga excessiva de trabalho e em cobranças exageradas – podendo evoluir para assédio moral.
A sensação de que é preciso “entrar no jogo” e seguir as regras que estão postas (mesmo não concordando com muitas delas) pode tomar conta de mestrandos e doutorandos, gerando desestímulo à carreira acadêmica e à pesquisa.
Não é fácil nem justo tentar combater um problema sistêmico de forma individualizada.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, é preciso ocupar os espaços, dividir as insatisfações e somar esforços na construção de um ambiente acadêmico menos competitivo e mais acolhedor.
Participação discente na tomada de decisão
De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e regimentos das instituições de ensino superior, a discussão sobre suas políticas acadêmicas e de gestão deve ser pauta de órgãos colegiados compostos por, no mínimo, 70% de docentes. Representantes administrativos e discentes podem participar, mas o colegiado máximo deve ter maioria de professores.
O psicólogo Filipe Buchmann, do programa ECOS da Universidade de São Paulo (USP), explica que um fator determinante de adoecimento muito importante na universidade é, justamente, a exclusão de alunos e funcionários da participação política institucional.
“Existe certa deslegitimação da possibilidade de contribuições tanto de alunos quanto de funcionários técnicos-administrativos”, diz Buchmann. “Isso fala de uma dinâmica de concentração de poder que cria condições para situações de abuso.”
Democratizar deliberações institucionais é de extrema importância no debate sobre saúde psíquica e mental de pós-graduandos e pesquisadores em início de carreira, avalia o historiador Heribaldo Maia, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades.
“É fundamental que, nas reuniões, os professores ouçam as demandas dos estudantes”, observa Maia. “Outra medida importante é possibilitar que alunos participem da elaboração dos editais de seleção dos programas de pós-graduação.”
Para Maia, ações desse tipo podem ampliar a participação de mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos em decisões capazes de impactar significativamente suas carreiras.
Vale lembrar que a disparidade de raça e gênero nas universidades também minam o senso de pertencimento à comunidade acadêmica. Há prevalência de professores homens e brancos no ensino superior brasileiro. Nos espaços de poder, eles também são maioria – e a falta de diversidade faz com que as principais decisões sejam tomadas por um grupo que representa apenas uma parcela da população universitária.
Na visão de Buchmann, a demora de algumas universidades em instaurar políticas afirmativas para pessoas pretas, pardas e indígenas pode ser interpretada como um indicativo da falta de diversidade nos colegiados das instituições.
“A inclusão étnico-racial e socioeconômica não favorece apenas o ingresso de mais pessoas negras, indígenas e de baixa renda nas universidades, mas também amplia a diversidade de problemas, contextos de vida e tipos de sofrimento mental com os quais a universidade precisa lidar”, afirma o psicólogo.
Essas pessoas, muitas vezes, vêm de outra realidade social e ingressam em uma instituição onde quase todos os docentes são brancos, com práticas que remetem a um universo para o qual elas não foram preparadas, ressalta Buchmann.
Este contexto conflitante, diz Buchmann, pode gerar muito sofrimento e, em muitos casos, evasão de estudantes. “Com base no atendimento psicológico de alunos cotistas, percebe-se que muitos ficam pelo caminho porque a instituição é muito dura para eles, e nem sempre dispõe de programas para acolher essas populações.”

Confiança pública na ciência
À baixa representatividade de discentes e pesquisadores nos processos de tomada de decisão nas universidades, soma-se a falta de visibilidade do trabalho de pesquisa no Brasil – outro fator capaz de influenciar o rumo de carreiras acadêmicas e abalar a autoestima de jovens pesquisadores.
A desvalorização da carreira acadêmica e científica é histórica e não se restringe à realidade brasileira. Um editorial da revista Nature publicado em 1º de abril alerta para uma forte tendência de fuga de cérebros nos Estados Unidos, motivada pelos ataques do governo de Donald Trump à comunidade científica do país. As ações incluem demissões em massa e corte de verbas em agências de apoio, congelamento de bolsas e retaliações contra universidades de prestígio, entre elas Harvard.
Cerca de 75% dos 1.600 cientistas norte-americanos que responderam a um questionário da Nature disseram que consideram deixar os Estados Unidos por conta do momento turbulento. Europa e Canadá estão entre as principais opções de realocação. “Muitos respondentes avaliam mudar para países onde já têm colaboradores, amigos, familiares ou proximidade com o idioma”, informou a revista.
No Brasil, dados divlgados em 2024 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) indicam que o interesse dos estudantes de graduação em seguir carreira acadêmica está em baixa.
Entre 2019 e 2022, mais de 14.000 vagas de pós-graduação foram fechadas, e 2022 teve o menor número de matrículas na pós-graduação em quase uma década.
De acordo com a Capes, um dos fatores que explicam o declínio no período analisado é a pandemia de covid-19. No entanto, o órgão reconhece que os sucessivos cortes e contingenciamentos do orçamento público para pesquisa atingem em cheio a capacidade do país de formar pessoal qualificado na pós-graduação.
Além da retração orçamentária, a Capes elenca outros aspectos relacionados à evasão de alunos na pós-graduação nos últimos anos:
- Questões emocionais e financeiras;
- Relações sociais insatisfatórias com colegas, professores e funcionários;
- Ausência de programas que contribuam para o enriquecimento curricular;
- Necessidade de trabalhar ou a dependência de alguém para custear os estudos;
- Distância de casa.
O desprestígio profissional, somado à desinformação científica e ao negacionismo, acabam comprometendo a confiança pública na ciência, como sugere um estudo publicado pelo Centro de Estudos Universidade, Sociedade e Ciência (SoU_Ciência), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
De acordo com a pesquisa, 36% da população brasileira não sabem o que é feito nas universidades públicas. O levantamento, que entrevistou 1.500 pessoas em 2021, também revelou que, mesmo entre jovens em idade potencialmente universitária (de 16 a 29 anos), há um alto grau de desconhecimento sobre o que realizam as universidades públicas (37%).
“Como parte da resistência frente aos ataques, retrocessos e negacionismo da ciência, a comunicação hoje é ainda mais urgente, especialmente com a população de menor renda e escolaridade e também com jovens e estudantes, no intuito de ampliar e democratizar o conhecimento e o acesso aos seus programas e atividades”, declarou em comunicado Soraya Smaili, professora da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e coordenadora geral do SoU_Ciência.
Esses e outros dados sobre a percepção pública da ciência mostram que também é necessário que haja um movimento das próprias instituições no sentido de se reaproximar da sociedade e reconstruir a sua credibilidade – não sem antes olhar para si, avaliar sua cultura e realizar os ajustes necessários.
Incertezas quanto ao futuro profissional
A carreira acadêmica segue um caminho muito peculiar. Enquanto em outras áreas as pessoas finalizam a graduação e geralmente ingressam no mercado de trabalho formal, na academia são várias etapas até que, de fato, a pessoa seja considerada um profissional.
“Esse plano a médio e longo prazo da nossa carreira causa muito sofrimento mental”, ressalta a química Juliana Fedoce, professora da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais.
Ela conta que, durante sua pós-graduação, o pai tentava acalmá-la com o conselho: “Você está dando um passo para trás para poder dar dois para frente”, mas não é tão simples assim.
Segundo o relatório Mestres e doutores 2024, produzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), a proporção de mestres e doutores com emprego formal, após completarem dois anos de titulação, vem caindo – revelando uma queda mais acentuada na taxa de emprego dos recém-doutores.
No caso dos doutores, a grande área com a mais elevada taxa de emprego formal dez anos após a titulação (em 2021) era a de ciências exatas e da terra (78,9%), enquanto a que apresentava a menor taxa era a de ciências biológicas (67,9%).
É muito difícil conseguir prever ou até planejar como ou quando avançar os tais “dois passos” mencionados pelo pai de Fedoce. Não há vagas o suficiente nas universidades públicas para todos os doutores que se formam anualmente no Brasil.
Além disso, com a diminuição da quantidade de concursos (consequência da redução em investimentos na educação e da precarização do ensino superior), muitos cientistas que desejam se tornar docentes acabam fazendo vários anos de estágio de pós-doutorado – uma posição de pesquisa temporária de um ou dois anos, com bolsa, sem vínculo empregatício ou direitos trabalhistas, e sem garantia alguma de contratação.
Para o médico Olavo Amaral, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a solução mais óbvia seria as pessoas buscarem empregos no mercado.
“Ocorre que a pós-graduação brasileira não prepara os jovens pesquisadores para atuar em outros setores”, avalia Amaral.
Cientistas sentem dificuldade ao buscar oportunidades fora da universidade por não terem experiência corporativa ou mesmo habilidades comportamentais (as chamadas soft skills) – ou por serem qualificados demais para alguns setores.
Há relatos de pesquisadores com pós-doutorado que escondem etapas da sua formação no currículo para conseguir um emprego.
Além disso, muitos pós-graduandos não têm contato com outras carreiras durante a sua formação, e acabam optando pela docência por pura falta de informações sobre outras possibilidades profissionais.
O relatório produzido pela Capes no ano passado sugere que, para reverter este quadro de baixa absorção de mestres e doutores na indústria e no setor empresarial (e de baixa atratividade da carreira científica), são necessárias “estratégias voltadas tanto à ampliação do investimento em pesquisas com foco em desenvolvimento e estímulo à inovação, quanto no incremento da formação de recursos humanos para inovação, passando pela aproximação do setor acadêmico ao empresarial.”
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