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IA na ciência: “Curiosidade dos cientistas não será automatizada”
Ferramentas auxiliam em tarefas acadêmicas, mas não substituem capacidade humana de fazer ciência pela curiosidade, diz pesquisador
Entre as possibilidades de uso da IA na pesquisa, destaca-se o emprego de ferramentas que organizam e analisam grandes volumes de dados e imagens | Imagem: Egberto Nogueira
O avanço da inteligência artificial (IA) generativa ameaça inflacionar a “economia do prestígio” na ciência, desafiando a autenticidade e a qualidade do texto como medida de sucesso para pesquisadores. Para o biólogo Helder Nakaya, pesquisador sênior do Einstein Hospital Israelita, a IA – capaz de gerar palavras e frases que fazem sentido – impacta diretamente a profissão de cientista, especialmente na execução de tarefas repetitivas e baseadas em dados.
“Dentro do sistema de recompensas na ciência, prestígio e visibilidade são alguns dos fatores que motivam pesquisadores a publicar artigos em periódicos renomados”, explicou Nakaya em encontro virtual organizado pelo Science Arena.
No entanto, a facilidade de gerar textos maravilhosos, com o inglês perfeito, torna difícil distinguir a qualidade dos pesquisadores a partir dos manuscritos submetidos para publicação”, avaliou Nakaya, estudioso do uso da IA na produção científica.
“A qualidade da escrita científica tem sido nivelada por ferramentas de IA”, alertou Nakaya, que também lidera o Laboratório de Biologia de Sistemas Computacionais da Universidade de São Paulo (USP) e atua em temas como bioinformática e análise visual de dados.
“Essa situação tem evoluído para uma crise de autenticidade, em que o valor de um texto cai se for percebido como não autêntico – ou seja, gerado por IA.”
O pesquisador especula que, nos próximos anos, a “moeda de troca” na comunidade científica será a autenticidade da produção científica, voltando o foco para o esforço humano imperfeito, mas genuíno, do processo de pesquisa guiado pela curiosidade.
Clique aqui para ver a íntegra da live com Helder Nakaya
A seguir, veja os principais tópicos abordados pelo pesquisador:
1. O Momento histórico e a velocidade da mudança
• A IA representa um momento histórico na humanidade, potencialmente “muito maior do que a Revolução Industrial”.
• A vida de todos será drasticamente alterada em um período muito curto, na projeção de três anos.
• A IA não é algo totalmente recente na pesquisa (já era usada na identificação de padrões e na predição em saúde), mas a grande mudança veio com a IA generativa, capaz de gerar conteúdo com sentido.
2. As três fases da IA na carreira científica
O impacto da IA na carreira científica pode ser dividido em três fases:
A. Fase Atual: A IA aumenta a produtividade, auxiliando em tarefas como escrever ofícios burocráticos e editar textos.
B. Segunda Fase (Próximos Anos): A IA fará tarefas melhor do que os humanos e responderá a perguntas de pesquisa. A parte “divertida” da ciência caberá aos cientistas, que terão que focar em fazer novas perguntas.
C. Terceira Fase (Longo Prazo): A IA já será capaz de formular perguntas novas e fornecer as respostas, analisando dados e realizando experimentos. Nessa fase, os cientistas se dedicarão a pesquisas movidas por curiosidade e interesses pessoais – e não pela pressão de encontrar aplicações práticas da ciência.
3. Impacto na formação e na criatividade de pesquisadores
• Existe uma preocupação com a formação das pessoas, pois aprender a fazer algo usando a IA desde o início (como uma “muleta”) não ativa as mesmas áreas do cérebro da mesma forma que o aprendizado tradicional.
• A IA levanta o questionamento sobre a preservação do pensamento crítico e da criatividade dos pesquisadores, uma vez que estas atividades são constitutivas do processo científico (como análise de dados e produção de papers).

4. A importância do fator humano e da conexão
• Apesar do aumento da produtividade proporcionado pela tecnologia (ex.: reuniões virtuais), o tempo dedicado a vínculos pessoais e conversas informais (como no coffee break de eventos) é crucial para o surgimento de colaborações e construção de networking.
• Conhecimento (informação que a IA pode fornecer) não é o mesmo que entendimento ou sabedoria. Essa sabedoria é percebida ao conversar com a pessoa e é o que determinará a avaliação de um cientista no futuro.
5. Uso e aceitação da IA na pesquisa
• O uso da IA é crescente; pessoas relutantes estão aceitando e usando a ferramenta “direto”, às vezes até em excesso, como em teses de doutorado.
• Muitos pesquisadores utilizam a IA para revisão de textos próprios e para atividades que consideram burocráticas ou manuais, que não aumentam o intelecto ou a criatividade.
• Embora seja recomendado em algumas políticas que o uso de IA seja indicado em agradecimentos ou métodos, é impossível provar ou prever o uso do recurso em artigos. A honestidade e a responsabilidade são do pesquisador.
• O impacto será transversal, mas atividades fora do computador (como o trabalho de campo) podem ter uma blindagem maior – enquanto tudo o que é feito “dentro” do computador poderá ser automatizado rapidamente.
6. O futuro da mentoria e papéis na ciência
• O papel do orientador está mudando. Como a parte técnica tende a ser amplamente automatizada (programação, análise de dados etc.), a função do orientador será mais de instigar a curiosidade e o senso crítico de pesquisadores em início de carreira.
• A parte técnica já pode ser quase totalmente automatizada, desde a formulação de hipóteses até a análise de dados e a escrita do artigo, usando diferentes IAs e robôs.
7. Reflexões filosóficas e éticas
• Muitas pessoas estão passando pelas “fases do luto da IA” (negação, raiva, barganha, depressão e aceitação), sentindo uma perda de autonomia ou relevância profissional.
• Há uma preocupação de que a IA seja usada principalmente para a otimização do lucro e possa aumentar a desigualdade, se não houver um protagonismo nacional na área e uma regulação adequada do setor.
• É crucial acelerar a regulação e a discussão ética da IA, pois a tecnologia avança muito mais rápido do que a capacidade de discussão diplomática.
• O futuro ideal é de aliança com a IA, onde ela inspira soluções que os humanos não teriam pensado, e os cientistas melhoram essas soluções, trabalhando como aliados e não como competidores
Clique aqui para ver a íntegra da live com Helder Nakaya
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