
“O caos não vai engolir minha humanidade”
A médica de família e pediatra Mariana Sato conta como consegue unir arte, ciência e medicina para humanizar o atendimento a pacientes no SUS

Foi a partir do incômodo de pacientes que a médica da família e pediatra Mariana Eri Sato Nishio promoveu uma revolução na pequena sala de espera da Unidade Básica de Saúde (UBS) onde trabalha, na periferia da zona oeste de São Paulo (SP).
Junto com membros da comunidade local e colegas de trabalho, Sato decidiu mudar o ambiente e torná-lo mais alegre, a fim de reduzir o estresse daqueles que chegam a aguardar horas para passar em consulta médica.
Foram colocadas em prática ações simples, como pintar as paredes com cores vivas e estampar o desenho de uma árvore em uma delas. “O clima mudou completamente”, diz Sato, que contou essa história durante o TEDxUSP, evento realizado no fim de maio na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
Em sua apresentação, a médica falou de sua batalha para impedir a desumanização da prática médica e da ciência, isto é, “não deixar o caos do dia a dia engolir minha humanidade.”
Ao aliar ciência, medicina e arte, Sato conseguiu unir mundos apenas aparentemente distantes. Além disso, percebeu como o interesse por arte poderia ocupar lugar central na sua atuação como terapeuta.
O olhar interdisciplinar também acompanha Sato na carreira acadêmica. No mestrado em medicina preventiva, na Faculdade de Medicina da USP, explorou a relação entre saúde, arte e humanização. No doutorado, em fase de conclusão na Faculdade de Saúde Pública da USP, a médica estuda práticas integrativas e complementares de saúde.
Supervisora do Programa de Atenção Primária da FM-USP, Sato busca uma maneira de conciliar métodos científicos e a chamada medicina integrativa – uma prática que reafirma a importância da relação entre o paciente e o profissional de saúde.
Ao Science Arena, Sato conta como tem sido sua trajetória na medicina e explica como a prática médica pode incorporar vieses menos formais sem perder o rigor técnico.
Science Arena – Como se deu processo de unir arte e medicina?
Mariana Sato – Foi acontecendo de forma orgânica. A medicina muitas vezes é enxergada como uma ciência mais dura, objetiva, concreta, técnica e protocolar. No entanto, a perspectiva criativa sempre me chamou a atenção. Como é que alguém se propõe a cuidar do ser humano sem abrigar elementos humanísticos?
Para mim, sempre foi muito pouco coerente deixar de fora os saberes de outras áreas do conhecimento, como antropologia, história, sociologia e filosofia, que buscam compreender o humano em sua inserção histórica e social.
Não se trata somente de cuidar do físico, mas de um corpo inserido numa dimensão social, histórica e cultural.
É importante destacar que a arte vai além das modalidades de expressão que as pessoas normalmente reconhecem, tais como pintura, música, cinema e teatro.
A arte também pode ser entendida como uma forma de expressão criativa, uma construção dialógica e espontânea que acontece entre as pessoas. Por isso, a arte pode estar presente na medicina.
Vale para qualquer modalidade?
Esse conceito mais amplo de arte, de construção coletiva, pode estar inserido normalmente dentro da medicina, que envolve tanto a técnica como a arte. A técnica é o protocolo, a diretriz, mas que não pode ser aplicada de forma indiscriminada.
Aí entra a arte, pois, quando o paciente se encontra com o médico, existe o fenômeno de uma construção colaborativa do plano de cuidados que surge a partir da bagagem, do contexto e da fala do paciente.
Esse é um processo artesanal que envolve trocas interpessoais e a abertura para o novo. Se pensarmos na arte enquanto esse processo criativo de construção colaborativa, ela pode estar em consultas médicas de qualquer especialidade.
Pode influenciar na maneira como o médico é visto?
O que estou propondo é que a gente pode ser muito profissional e muito técnico, mas numa relação um pouco mais orgânica e espontânea dentro de um consultório.
É preciso usar todo o conhecimento técnico para elaborar diagnósticos e propor a terapêutica, mas também é preciso estar aberto para o novo, permitindo uma interação mais espontânea entre as pessoas por detrás dos papéis que desempenham. Desta dinâmica pode sair um plano de cuidados muito mais efetivo.
Como começou essa “mistura” na sua carreira?
Percebia que muito do que os pacientes levavam para a consulta eram problemas que não seriam completamente resolvidos com os recursos farmacológicos da medicina.
Nas consultas, além de aplicar a abordagem mais convencional e aprimorar a comunicação, fui entendendo que as modalidades artísticas poderiam também ocupar um lugar de fortalecimento, como processo terapêutico.
É claro que a gente precisa se moldar àquilo que a medicina propõe como forma de fazer a consulta médica acontecer, mas existe a possibilidade de encontrar brechas para deixar aparecer a nossa própria humanidade, a nossa própria criatividade
Houve algum preconceito por usar essas abordagens menos convencionais?
Costumo transitar entre colegas que têm outros pontos de vista sobre o que a medicina deve oferecer às pessoas. Então, na Faculdade de Medicina da USP, eu poderia ter enfrentado algum tipo de oposição mais explícita, mas isso não aconteceu.
Ser quem sou dentro de uma instituição como esta [a universidade] acaba sendo uma forma de resistência em si. E acho que é interessante, porque eu represento um modelo de médico diferente dos outros modelos hegemônicos na instituição. Isso pode inspirar alguns e, ao mesmo tempo, desagradar outros.
E nas Unidades Básicas de Saúde?
Sempre tive um vínculo muito bom com a comunidade, com os pacientes, e nunca sofri nenhum tipo de enfrentamento. Em geral, os profissionais de saúde que atuam na atenção primária já têm maior abertura para se aproximar do saber popular, dos saberes da comunidade. Isso porque geralmente são médicos que escolhem sair do hospital para estar mais próximos da comunidade. Minha percepção é de que são profissionais com um perfil mais flexível.
Intervenções na sala de espera de uma UBS na zona oeste de São Paulo (SP), realizadas pela pediatra Mariana Sato em parceria com pacientes e profissionais de saúde do local | Imagens: Arquivo/Mariana Sato
E que, portanto, seriam mais abertos a intervenções como a sessão de pintura que você promoveu na sala de espera de uma UBS?
A sala de espera sempre foi um espaço onde as pessoas estavam muito estressadas, impacientes, onde todo mundo circulava com muita ansiedade. Para tentar melhorar o clima – já que não tinha como contratar mais profissionais para oferecer um serviço mais ágil – os profissionais de saúde e a comunidade entenderam que poderiam se apoderar do espaço.
Propusemos uma nova configuração para que o ambiente não fosse somente algo instrumental, higienista, funcional. Os serviços de saúde normalmente têm essa característica mais “estéril”.
Então, com o apoio da gerente Ana Emília, que já tinha um olhar mais progressista da saúde, desenhamos um novo espaço e as pessoas participaram ativamente do processo criativo através de desenhos, votações, planejamento e execução das mudanças implementadas.
Como isso foi viabilizado?
É importante falar isso, pois qualquer pessoa que transitar por Unidades Básicas de Saúde vai perceber que são espaços padronizados, com as mesmas cores, mesmo design, essa cara que todas as UBS têm, tudo muito parecido.
Conseguimos atravessar esse padrão e propor uma outra configuração com apoio do conselho gestor, que é uma instância com representatividade tanto da comunidade quanto dos profissionais de saúde.
Esse conselho aprovou o projeto da reconfiguração da sala de espera, e assim foi possível justificar junto à gestão municipal a mudança daquele espaço físico.
É bacana, porque o SUS [Sistema Único de Saúde] prevê essa gestão participativa e, sem essas instâncias, iniciativas ancoradas na arte, como esta que realizamos, não teriam sido aprovadas nem executadas.
Como conciliar técnica e atendimento humanizado?
Ser um excelente profissional técnico é um pré-requisito. Mas para ser um bom médico isso não é o suficiente; é preciso se formar também como pessoa, ter uma bagagem muito mais ampla do que a própria medicina. Isso significa beber de outras fontes, como arte, cinema, teatro, literatura, conhecer pessoas diferentes de nós, conviver com a alteridade.
É preciso sair da bolha e se colocar em campo, porque nossa área de conhecimento é a vida, e isso inclui vidas diferentes da nossa.
Vamos nos deparar com todos os tipos de pessoas. Nesse sentido, nosso repertório tem que abrigar outras dimensões, essas outras perspectivas e modos de vida. Caso contrário, é impossível a gente, de fato, entender e ajudar alguém que nos procura.
Qual é a importância da comunicação nesse processo?
A comunicação é muito importante, e pode ser desenvolvida por meio da técnica. O bom médico não somente sabe medicina; sabe também se comunicar. No entanto, além da competência comunicacional, o médico deve desenvolver uma disposição legítima para o outro que se apresenta.
Por isso, digo que parte da formação do médico se dá para fora, e peço para meus alunos estarem num constante exercício de alteridade e no constante movimento de sair da sua bolha. Costumo dizer que não precisam se sentir culpados por ir ao cinema ou ao teatro nos raros momentos de lazer. Isso faz parte da sua formação.
A medicina da família e da comunidade tende a crescer como área no Brasil?
É uma área muito necessária e que, no Brasil, está ganhando força há pouco tempo. Em outros países, entre eles a Inglaterra, ela já é muito mais consolidada. Lá, todo o sistema de saúde é construído em torno da atenção primária, com a atuação destacada do médico de família.
Aqui, você tem uma dor de cabeça e o próprio paciente tem que fazer um pré-diagnóstico para entender qual especialista deve procurar: o oftalmologista, se achar que está com problema visual; o neurologista, se achar que tem enxaqueca; etc.
Na maioria dos casos, um bom médico de família vai resolver o problema sem precisar encaminhar o paciente para demais especialidades, sem a necessidade de exames caros ou complicados.
O médico da família consegue resolver o caso apenas acompanhando o paciente ao longo do tempo, pois grande parte dos problemas de saúde cotidianos são auto resolutivos, transitórios, que não precisam de uma intervenção mais complexa da medicina.
E no sistema privado?
Também estão percebendo que investir na atenção primária é bom para o paciente e bom para a entidade, do ponto de vista econômico, pois não requer tantos exames, internações, remédios. Quando existe uma equipe muito boa que acompanha a família ao longo do tempo, isso economiza recursos para o sistema privado.
Alguma dica para quem quer ir para esta área?
É legal passar por um estágio, conhecer o que é a vida de um médico de família, porque existem muitos desafios. Há outras especialidades que proporcionam uma rentabilidade financeira maior, mas é possível que a vivência na comunidade traga como benefício uma valorização que proporciona uma grande satisfação no trabalho.
Isso pode ser gratificante: desempenhar uma ação em que você percebe o impacto pelo reconhecimento das pessoas, pois a depender da especialidade escolhida, pode ocorrer algum distanciamento do imaginário do que é ser médico.
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