
Sofrimento psíquico no ambiente acadêmico: O peso das relações e do produtivismo desenfreado
Deterioração da saúde mental de cientistas e pós-graduandos indica que são necessárias mudanças estruturais no ambiente de pesquisa brasileiro

Esta é a primeira reportagem de uma série que o Science Arena publicará nas próximas semanas. Ela resulta do trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado por Eduarda Antunes Moreira, sob orientação do professor Ricardo Whiteman Muniz, na especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp).
O ambiente acadêmico tem se mostrado um espaço de muito sofrimento psíquico. Diversos são os relatos de insatisfação, sobrecarga, pressão, cansaço ou até, em casos mais graves, crises de pânico, ansiedade, depressão e suicídio.
Mas o que explica a crise da saúde mental de pessoas que se dedicam à ciência?
Nesta série de reportagens serão abordados alguns dos aspectos da vida acadêmica que podem estar no centro deste problema, debatido aqui a partir das vivências e opiniões de pesquisadores de diferentes áreas – além de um psicólogo que atua dentro da universidade e um aluno de doutorado, que vive diariamente esse universo.
Principalmente a partir da última década, questões psicológicas se tornaram um assunto recorrente dentro dos laboratórios ou pelos corredores das universidades.
Um estudo publicado na revista Scientific Reports apontou, a partir da revisão de artigos sobre a saúde mental de estudantes de doutorado de sete países, que a prevalência de depressão e ansiedade entre estes pós-graduandos era de 24% e 17%, respectivamente.
Enquanto isso, na população geral, esses índices vão de 5% a 7% ou, mais especificamente, de 13% a 15% entre os jovens adultos.
No livro Sociedade do cansaço, o filósofo coreano Byung-Chul Han afirma que, a partir do século XXI, a humanidade passou a viver em uma “sociedade do desempenho que produz depressivos e fracassados” como consequência da pressão por desempenho e produção.
Os dados de fato indicam um momento crítico: o Relatório Mundial de Saúde Mental, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2022, aponta que apenas durante o ano de 2020 – primeiro ano da pandemia de covid-19 – houve um aumento de mais de 25% no número de pessoas com transtornos de depressão e ansiedade ao redor do mundo, chegando a cerca de 246 milhões de pessoas vivendo com depressão e 374 milhões vivendo com ansiedade.
Ainda segundo a OMS, o Brasil é o país com a maior prevalência de depressão na América Latina. Some-se a isso o fato de que os jovens adultos são uma das populações mais suscetíveis a transtornos psicológicos.
Escassez de estudos
Estudos mais amplos e robustos são necessários para compreender a real gravidade do problema que afeta cientistas, considerando as particularidades de cada país e região.
No Brasil, há poucos dados sobre a qualidade da saúde mental dentro das universidades, menos ainda cobrindo especificamente a pós-graduação e o ambiente de pesquisa.
De acordo com Filipe Rebelo Buchmann, psicólogo do Programa ECOS, voltado ao atendimento psicológico de alunos, professores e funcionários administrativos da Universidade de São Paulo (USP), é um problema recorrente (e não só do Brasil) as universidades estudarem pouco suas próprias comunidades.
“Com mais dados, as políticas públicas de prevenção e tratamento de transtornos psicológicos dentro da comunidade universitária seriam muito mais efetivas. Mas parece existir pouco incentivo para pesquisas nesse sentido”, avalia Buchmann.
Ainda assim, com a disseminação do debate, acadêmicos passaram a refletir mais sobre o tema, observar o ambiente em que estão inseridos e buscar compreender as causas e consequências desse fenômeno.
O historiador Heribaldo Maia, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades, descreve o ambiente acadêmico como um microcosmos da sociedade, mas com características acentuadas que o fazem parecer “quase como uma panela de pressão.”
O pesquisador aponta o individualismo, a competitividade e a mentalidade extremamente produtivista como algumas das particularidades que, somadas, acabam afetando profundamente o psicológico das pessoas que optam por construir uma carreira científica.
“O capitalismo colocou na universidade uma lógica de mercado, de que a concorrência beneficia a produtividade e vai beneficiar o consumidor, porque o produto vai ser melhor. Isso não se faz verdade na ciência”, afirma Maia.
O físico Peter Schulz, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concorda que o neoliberalismo invadiu a academia e as universidades, “manifestando-se, principalmente, na pressão por produzir cada vez mais e no individualismo, que leva a uma fragmentação das relações.”
Dessa forma, a partir do isolamento – ainda mais acentuado no pós-pandemia – e do acúmulo de tarefas e cobranças, cientistas têm se tornado o “sujeito de desempenho e produção” descrito na obra de Byung-Chul Han, extremamente vulnerável ao “cansaço de fazer e de poder” que, de acordo com o autor, caracteriza a depressão.

Solidão entre pesquisadores
A academia é um ambiente solitário, principalmente para pós-graduandos: cada um tem seu próprio projeto, com seus objetivos, compromissos e prazos. Nos melhores cenários, o docente orienta e o grupo de pesquisa acaba se tornando uma rede de apoio. No fim, porém, a defesa da tese e a banca são individuais e intransferíveis.
É uma responsabilidade enorme tocar um projeto “sozinho” durante os quatro anos de doutorado, e quanto maior o isolamento, maiores os desafios.
Muito do debate científico é feito em ambientes informais: no café pós-almoço, no coffee break dos congressos, ou mesmo no dia-a-dia do laboratório, acompanhando os experimentos de outras pessoas.
Durante a pandemia de covid-19 foi possível perceber que não é necessário estar no mesmo ambiente para participar de encontros e resolver problemas.
Se, por um lado, reduziu-se a necessidade de longos e cansativos deslocamentos – como no caso de pessoas que dependem de transporte público para ir até a universidade –, por outro, muitos se acostumaram com reuniões remotas, por celular ou computador, e isso fez com que as relações se tornassem cada vez mais distantes.
Os projetos individuais até podem ser concluídos dessa maneira, mas será que é melhor assim?
Para resumir essa questão, Schulz cita o historiador inglês Peter Burke, em seu livro “O que é história do conhecimento?”:
“Apesar da relevância das novas formas de comunicação, o meio mais eficaz de disseminação continua sendo o antigo, ou seja, o encontro com as pessoas. Argumentou-se que ‘a transferência de conhecimento realmente valioso de um país para outro ou de uma instituição para outra não pode ser facilmente obtida pelo transporte de cartas, periódicos e livros: ela requer o movimento físico dos seres humanos’. Em suma, ‘as ideias circulam por aí dentro das pessoas”.
A universidade é um local de estudo, trabalho, produção, mas não pode ser só isso, é preciso reocupá-la e retomá-la como um espaço de convivência, argumenta Heribaldo Maia.
Caso contrário, diz ele, a universidade se torna um lugar vazio de alma, de vida humana, de acolhimento, de pertencimento. “Isso também é um elemento central para diminuir o adoecimento mental na universidade.”
Sobrecarga
Praticamente todas as pessoas dentro do ambiente acadêmico – sem distinção entre alunos, pós-doutorandos e professores – se dizem sobrecarregadas. É comum que pesquisadores trabalhem muito além das oito horas diárias previstas, tanto em dias úteis quanto em fins de semana ou feriados.
Momentos de lazer ficam de lado para que seja possível cumprir todas as tarefas. Cotidianamente o trabalho é levado para casa, não deixando espaço para descanso. Quando ele existe, vem carregado de culpa, pois sempre deixa uma pendência.
“Na academia, toda a nossa perspectiva de futuro passa pela produtividade”, ressalta Maia. “Existe uma estrutura que faz com que as suas ações, as relações com os outros e o estar naquele ambiente passem, em alguma medida, por ser produtivo.”
No Brasil, o trabalho de pesquisador é essencialmente ligado ao ensino superior: os professores universitários são, também, os “chefes” dos grupos de pesquisa.
Portanto, são responsáveis por preparar e dar aulas, preparar e corrigir provas, atender alunos, dar palestras em congressos, escrever e submeter projetos de pesquisa para conseguir financiamento, coordenar projetos de extensão, entre outras tarefas administrativas.
“Nas últimas décadas houve uma diminuição drástica de novas contratações. Para além da sobreposição de funções, temos cada vez menos funcionários nas universidades e menos gente para dividir esse trabalho todo”, explica a química Juliana Fedoce, professora da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, e fundadora do Instituto Sua Ciência, organização sem fins lucrativos dedicada a disseminar conhecimento e buscar alternativas de financiamento à pesquisa.
Vale destacar que, apesar das queixas semelhantes, alunos e docentes não estão na mesma posição, já que existe uma hierarquização das relações.
“Mesmo que os professores também adoeçam mais do que a média social – por conta do mesmo sistema que adoece os alunos – eles estão em um nível, tanto de reconhecimento social e simbólico, quanto financeiro, que produz uma forma de adoecer e uma resposta ao adoecimento diferenciadas”, diz Maia.
Assédio moral
Além de terem melhores condições profissionais, sociais e financeiras para lidar com o sofrimento psíquico, alguns docentes transformam a sobrecarga à qual estão expostos em abusos e assédios sobre seus alunos – uma das principais queixas dos pós-graduandos que buscam o Programa ECOS da USP.
Em sua experiência, Filipe Buchmann observa que parte da pressão e do adoecimento dos docentes é repassada para o próximo degrau, que pode ser um funcionário, um aluno de pós, ou até um aluno de graduação.
“Os alunos de pós-graduação, que estão no laboratório fazendo pesquisa, vão influenciar mais diretamente na produtividade do docente e na quantidade de artigos, o que gera uma maior expectativa dos professores em relação ao cumprimento de metas – que por vezes são inalcançáveis”, comenta o psicólogo.
Infelizmente não são raros os relatos de supervisores que ligam ou enviam mensagens sobre trabalho no período da noite, aos finais de semana ou até de madrugada; que exigem quantidades absurdas de resultados em curtos períodos de tempo; e que repassam aos pós-graduandos as suas obrigações, como preparar e ministrar aulas, além de elaborar e corrigir provas.
Outra barreira é o medo das vítimas de denunciar e acabar piorando sua situação acadêmica: sofrer represálias dentro do grupo de pesquisa, piora do assédio ou ter dificuldade em encontrar outro professor que aceite a orientação após a denúncia.
Eduarda Antunes Moreira é farmacêutica graduada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), mestre e doutora em ciências pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP), e especialista em jornalismo científico pelo Labjor-Unicamp. Atua como bolsista Mídia Ciência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) no Laboratório de Farmacologia de Produtos Naturais Marinhos do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
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