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29.05.2025 Musicoterapia

Entre notas e sentidos: música, cuidado e espiritualidade

Ao longo do tempo, a música tem sido usada para acessar dimensões imateriais do ser humano, agindo na saúde e na espiritualidade para um bem-estar físico e psicológico

Entre músicas e sons da natureza, paisagens sonoras ajudam a compor cuidados com a saúde Entre músicas e sons da natureza, paisagens sonoras ajudam a compor cuidados com a saúde | Marlon Reyes - Unsplash

As experiências mais profundas da existência talvez não sejam mediadas por palavras, mas por imagens, sons e silêncio. 

Para os povos antigos, como gregos, hindus e egípcios, ciência e espiritualidade andavam juntas e, consequentemente, assuntos como música, filosofia, religião e artes em geral eram vistos como expressões de uma realidade transcendental e intimamente ligados. 

Vivemos, hoje, uma realidade marcada por novos valores e desafios

Ainda assim, refletir sobre formas de cuidar que valorizem a vida em seu sentido mais amplo, a ética nas relações cotidianas e a atenção à dimensão interior do ser torna-se imperativo, em um mundo permeado por conflitos e violências que comprometem a saúde e o bem-estar

Isso, contudo, requer um olhar mais profundo sobre a multidimensionalidade humana.

Anos atrás, quando conduzia uma das minhas pesquisas em dor, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, atendi um paciente com diagnóstico de fibromialgia. 

Quando ele veio para participar de uma segunda sessão terapêutica musical, ao entrar no consultório, com um livro de Sartre embaixo do braço, me disse: “Hoje vou visitar minha alma, na volta te conto como estava lá.”  

Confesso que a frase me causou certo espanto, enquanto buscava avaliar parâmetros fisiológicos, por meio de um eletromiógrafo de superfície.   

Naquele instante, compreendi que a música podia ir muito além de aliviar dores — ela podia tocar algo indizível e de caráter existencial.

Na interface entre saúde e espiritualidade, a música, como tecnologia leve de cuidado, tem sido capaz de acessar dimensões imateriais do ser: memória, afetos, simbolismos, sentido da vida, como nos lembra Guimarães Rosa: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. 

A perspectiva espiritual inclui conteúdos existenciais, que, por sua vez, têm implicações no bem-estar físico e psicológico

A espiritualidade é uma parte complexa e multifacetada da experiência humana e não depende de afiliação religiosa, ainda que a fé religiosa tenha um papel importante na saúde.

Estudos têm buscado entender como a religiosidade, a fé e a espiritualidade podem interferir na evolução clínica positiva de pacientes e até na prevenção de doenças. 

Vale lembrar que a espiritualidade tem aspectos cognitivos, emocionais e comportamentais:

Mas, como selecionar um repertório musical quando queremos inseri-lo no cuidado à saúde? 

Impacto sonoro

A estrutura musical pode nos fornecer subsídios objetivos para uma seleção apropriada. Algumas composições estimulam o corpo e favorecem a expressão física; outras, atuam em nível emocional evocando afetos e memórias

Já na esfera mental, se enquadram canções que nos levam a refletir, principalmente sobre suas letras, e podem constituir um caminho inicial para acessar a espiritualidade, uma vez que, além de nos remeter a imagens mentais e simbólicas, nos levam a pensar sobre questões relacionadas à nossa existência, à forma como vivemos e ao significado de nossas vidas. 

Versos como os de Renato Teixeira e Almir Sater na canção ‘Tocando em Frente’ estabelecem uma possibilidade de diálogo, ainda que interno, sobre o assunto: “Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha, ir tocando em frente”.  

E há aquelas que parecem operar em níveis mais reflexivos, abrindo espaço para introspecção e reelaboração existencial, como a música erudita de Johann Sebastian Bach (1685-1750). 

Quando propomos um material sonoro-musical para cuidar da saúde, temos que ter em mente que seu impacto, portanto, pode variar conforme a estrutura sonora, a melodia, a letra, o ritmo, a harmonia e, sobretudo, o universo de significados dos ouvintes ou daqueles que a própria música ou paisagem sonora lhes propõe e inspira. 

Em um cenário ampliado de escuta, os sons da natureza também merecem atenção. 

O som de um riacho, o canto dos pássaros, o sussurro das folhas ao vento, não apenas compõem paisagens sonoras agradáveis, como também ativam em nós uma memória ancestral de pertencimento ao mundo natural.

Evidências demonstram que sons naturais podem reduzir níveis de estresse, induzir estados de relaxamento e ampliar a sensação de presença e de conexão com a vida. 

Assim como a música, os sons da natureza também podem ser esteticamente apreciados. Há neles ritmos, pausas, camadas. 

Cuidado complementar

Essa estética sonora, não construída pelo ser humano, pode nos colocar em contato com algo que nos transcende

É uma forma de espiritualidade imanente e de experiência com o sublime da vida

A música e os sons do mundo natural, quando bem utilizados, podem ampliar as possibilidades de cuidado complementar em saúde

Permitem que se crie um espaço de encontro — entre quem cuida e quem é cuidado, entre o indivíduo e sua história, entre o agora, aquilo que ainda faz sentido e um vir a ser. E faz isso sem invadir, sem exigir discurso, apenas abrindo uma escuta. 

A música, por sua vez, opera onde, por vezes, as palavras falham. Pode consolar, provocar, despertar. Pode abrir caminho para o que Hegel (1770 – 1831) chamou de “experiência do espírito” — aquela que permite ao ser humano se reconhecer como parte de algo maior, mesmo que não saiba nomear o que é.

Em um mundo cada vez mais técnico e fragmentado, talvez possamos reaprender a escutar. Escutar o que está por trás dos sintomas. Escutar o que não está nos manuais. Escutar o que vibra no silêncio do outro

A música é uma via para isso: atravessa o invisível e nos lembra que cuidar é também encontrar formas de restaurar o vínculo com a própria existência.

Eliseth Leão é pesquisadora sênior do Hospital Israelita Albert Einstein e líder do Grupo de Pesquisa e-Natureza: estudos interdisciplinares sobre conexão com a natureza, saúde e bem-estar (CNPq).

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Hospital Israelita Albert Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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