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26.02.2025 NOVAS TECNOLOGIAS

Em tempos de escravidão digital

Embora avanços da ciência nos levem a novos patamares civilizacionais, a falta de critério no uso de tecnologias digitais pode afetar nossa experiência sensorial do mundo real

Aprisionamento digital e menor conexão com a natureza podem gerar níveis mais altos de ansiedade | Imagem: Robin Worrall / Unsplash

As maiores invenções do último milênio foram transformadoras e impactaram profundamente a sociedade, a economia e a ciência. Dentre elas, poderíamos destacar, a partir do século XV, a eletricidade, a máquina à vapor, o telefone. 

Nos últimos dois séculos experimentamos uma verdadeira revolução.  

Os aviões foram criados, assim como a energia nuclear, os computadores, a internet, a inteligência artificial, a bomba atômica, que causou destruição em massa e ceifou a vida de milhares de pessoas em Hiroshima e Nagazaki, no Japão. 

Vimos Neil Armstrong (1930-2012) caminhar pela lua, a partir de outra invenção, a televisão, em uma transmissão em preto e branco assistida por mais de 600 milhões de pessoas em todo o mundo.

Na saúde, em pouco mais de 200 anos, as vacinas permitiram o controle de doenças como a varíola, o sarampo, a poliomielite, até chegarmos na vacina contra o coronavírus. 

Surgiram a anestesia, os antibióticos, as técnicas cirúrgicas da cirurgia moderna, a robótica contemporânea, a energia nuclear para uso médico, que melhorou o diagnóstico e tratamento de diversas doenças, salvando assim, milhares de pessoas.

Todas as invenções e tecnologias não são, em si mesmas, nem boas e nem más. Isso depende apenas do uso que se faz delas.  

Por isso, liberdade para crescer e saúde individual e coletiva parecem boas finalidades que deveriam sempre nortear seu uso ético

Dependência digital

Podemos tomar, como exemplo cotidiano, o seu pequeno smartphone, no qual você pode estar lendo este texto neste momento. 

Em meio às facilidades da era digital, paradoxalmente, nos encontramos mais aprisionados do que nunca. 

Esse dispositivo que nasceu para ampliar a liberdade de comunicação, tornou-se um grilhão moderno que condiciona nossas interações, nosso lazer e até nossa percepção da realidade

Como um “Big Brother” camuflado de assistente pessoal, ele vigia, coleta dados, induz comportamentos e perpetua ciclos de dependência, privando-nos da experiência sensorial do mundo real.

A digitalização da vida impõe novas formas de servidão: estamos sempre on-line, subjugados pela hiperconectividade

Sua agenda, seu itinerário, seus arquivos, suas fotos, suas senhas, seu acesso a outros sistemas digitais, pois hoje é quase impossível acessar qualquer sistema sem que você tenha que receber um código de acesso pelo celular ou por um e-mail válido.  

Facilidades que nos tornam mais autônomos e saudáveis?  

Pesquisadores apontam que a exposição prolongada às telas afeta a saúde mental, aumentando os índices de ansiedade e depressão, comprometendo a saúde infantil. 

A dependência digital se assemelha a outras formas de compulsão, com efeitos devastadores sobre a cognição e a interação social, mas também sobre a forma que nos relacionamos com a natureza.   

Outro estudo demonstrou que o uso excessivo de smartphones está relacionado a níveis mais altos de ansiedade

Sugere ainda que mesmo níveis de uso de smartphones percebidos como não problemáticos podem impactar negativamente a sensação de conexão com a natureza

Consequentemente, quanto maior ausência da natureza, menores são as possibilidades de usufruir de seus benefícios para a saúde mental. 

O espaço natural, que por séculos foi um refúgio para a contemplação e a conexão interior, cede lugar a um universo pixelado e filtrado por telas.

Em seu romance “1984”, o escritor britânico George Orwell imaginou um mundo onde o controle se dava pela vigilância absoluta | Imagem: Edward Eyer / Unsplash

Detox digital

No livro “1984”, George Orwell (1903-1950) imaginou um mundo onde o controle se dava pela vigilância absoluta. 

Aldous Huxley (1894-1963), em “Admirável Mundo Novo”, previu uma distopia em que as pessoas aceitavam passivamente sua própria alienação, entretidas por distrações superficiais. 

Vivemos uma fusão dessas realidades: somos monitorados e, ao mesmo tempo, mantidos em um estado perpétuo de entretenimento e dispersão. 

A que José Saramago (1922-2010), ainda que lido em uma tela, nos alertaria em seu “Ensaio sobre a Cegueira”: “Penso que não nos tornamos cegos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.”  A dependência digital se assemelha a outras formas de compulsão, com efeitos devastadores sobre a cognição e a interação social, mas também sobre a forma que nos relacionamos com a natureza.   

A maior ironia é que a consciência dessa servidão digital depende da própria tecnologia que nos aprisiona.

Os movimentos de “detox digital” e “minimalismo tecnológico” são uma tentativa de resgate da autonomia, mas esbarram na própria estrutura de uma sociedade cada vez mais digitalizada

Para romper esse ciclo, é necessário um reposicionamento coletivo: impor limites ao uso das telas, valorizar a presença no mundo real e reatar laços com a natureza e com nós mesmos.

Assim como Prometeu, na mitologia grega, roubou o fogo dos deuses para libertar a humanidade, precisamos recuperar nosso tempo e atenção da própria criação tecnológica. 

A pergunta que resta é: teremos coragem de quebrar nossas próprias correntes?

Eliseth Leão é pesquisadora sênior do Hospital Israelita Albert Einstein e líder do Grupo de Pesquisa e-Natureza: estudos interdisciplinares sobre conexão com a natureza, saúde e bem-estar (CNPq).

 

 

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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