SOBRE
#Colunas
05.09.2025 Inovação

Estado invisível: como contratos públicos criaram a Boston Dynamics

Financiamento público ao desenvolvimento tecnológico deve partir, principalmente, da busca por resolver desafios específicos da sociedade

O engenheiro Marc Raibert, fundador da empresa norte-americana Boston Dynamics, com um dos robôs criados pela companhia, o Spot, que lembra um cachorro O engenheiro Marc Raibert, fundador da empresa norte-americana Boston Dynamics, com um dos robôs criados pela companhia, o Spot | Imagem: Web Summit / Wikimedia Commons

Para que empresas capitalistas introduzam novidades em seus mercados, ou seja, inovações, é preciso que realizem investimentos complexos, custosos e, sobretudo, incertos (tanto do ponto de vista tecnológico, quanto comercial). 

Justamente por isso, têm grande receio em realizar tais investimentos.

O problema todo é que, no modo de produção capitalista, a empresa é a responsável por produzir bens e serviços que, quase sempre, nos fazem viver mais e melhor. É daí que advém a necessidade de apoio público à inovação, que é uma estratégia de sobrevivência eminentemente privada.

Neste alvorecer de século, esse apoio pode tomar diferentes formas. O Estado pode conceder bolsas de pesquisa e de desenvolvimento, crédito subsidiado ou mesmo recursos a fundo perdido. Essas são as formas mais tradicionais e passivas de apoio. 

Passivas porque esses instrumentos públicos foram criados e são executados para dar suporte aos projetos de interesse das próprias empresas.

Tais instrumentos funcionam muito bem para reduzir o custo de oportunidade da inovação, mas não são adequados para resolver grandes problemas sociais e exatas demandas do Estado, principalmente quando o mercado não tem interesse em resolvê-las. 

Isso porque seu paradigma de apoio baseia-se na excelência técnico-científica do esforço de pesquisa, desenvolvimento e inovação, e não na busca por entregáveis rigidamente estabelecidos segundo determinada demanda formal. 

Em outras palavras, seus objetos, regras de incentivo e punição destinam-se a apoiar projetos que façam sentido para as estratégias das empresas, e não de seu financiador.

Nesses instrumentos, no máximo, o Estado pode influenciar e apontar áreas tecnológicas e problemas gerais, mas nunca um objeto determinado. Além disso, não permitem a aquisição em larga escala de seus potenciais resultados. 

O que o Estado fomenta por meio de crédito, por exemplo, não pode, por ele, ser imediatamente aquirido para aplicação concreta em um problema público. Todo um processo licitatório tradicional precisa ainda ser feito. 

A partir de crédito, subvenção econômica e bolsas de pesquisa é possível esperar resultados comerciais apenas nos médio e longo prazos, e totalmente direcionados ao interesse comercial de seus desenvolvedores.

Objetivos específicos

Países como Estados Unidos e China já compreenderam que, para provocar tração rápida em seus projetos de desenvolvimento tecnológico, é preciso ter mecanismos nos quais o financiador (no caso o Estado) tenha controle total – não sobre a forma como atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) serão realizadas, mas sobre qual problema resolver.

Esses países, assim como a União Europeia, utilizam a compra de serviços de PD&I como instrumento de fomento à inovação e de resolução de problemas complexos.

Contratos de serviços de PD&I têm cláusulas específicas e uma regulação voltada para que o desenvolvimento tecnológico passe a ser meio, e não fim. 

Por isso, não são regidos apenas pelas legislações de inovação, mas também de compras públicas, aquelas que dizem respeito às licitações e dispensas de licitação.

Nesses contratos, a estratégia da empresa privada encontra a estratégia pública num diálogo virtuoso, no qual ambas as partes, mesmo com lógicas distintas, atuam em conjunto para tentar encontrar determinada solução para um problema específico. 

Aqui, não basta realizar pesquisa, mesmo que de excelência. É preciso perseguir determinado objetivo, independentemente da complexidade tecnológica.

Em minha coluna de julho de 2024, abordei essas questões e mostrei que os contratos de serviços de PD&I, no Brasil, chamados de Encomendas Tecnológicas, não provocam apenas mudanças que podem ser tratadas, pelos mais desavisados, como mera tecnicalidade. Mas, ao contrário, subvertem a lógica ‘ofertista-linear’ e colocam o demandante no topo da governança do processo.

Naquela oportunidade, trouxe apenas poucos exemplos superficiais. 

Agora, trago com um pouco mais de detalhe o caso da empresa estadunidense Boston Dynamics, e como essa referência em robótica foi criada a partir de contratos de PD&I – e não bolsas de pesquisa, crédito subsidiado ou subvenção econômica a fundo perdido.

Veículo terrestre não tripulado avalia ferimentos de vítima simulada em workshop promovido em março pela DARPA, agência de projetos de pesquisa de defesa do governo dos EUA
Em workshop realizado em março, a DARPA (agência de projetos de pesquisa de defesa do governo dos EUA) simulou situações emergenciais a fim de estimular o desenvolvimento de inovações que facilitem e agilizem o atendimento médico em incidentes com vítimas em massa | Imagem: Paul Flacks / DARPA

Contratos públicos

Nos vários vídeos virais que circulam há mais de uma década, robôs como o Spot (que parece um cachorro) ou o Atlas (que realiza tarefas braçais bem melhor que eu) nos deixam boquiabertos. São máquinas que zombam de nosso lento processo de evolução nas savanas africanas e flertam com o que antes era exclusividade da ficção científica. 

Contudo, por trás dos músculos hidráulicos, dos sensores sofisticados e do equilíbrio impressionante, está um elemento invisível para a gigantesca maioria das pessoas: o contrato público

A Boston Dynamics, hoje celebrada como um dos maiores expoentes mundiais da robótica, nasceu no meio acadêmico — mais precisamente na Universidade Carnegie Mellon e no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

A empresa floresceu graças ao financiamento direto da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (DARPA) do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, criada em 1958 em resposta aos avanços tecnológicos da antiga União Soviética com o lançamento do satélite Sputnik no ano anterior. 

A consolidação da Boston Dynamics como líder global em robótica móvel não deve quase nada a rodadas de venture capital, aceleradoras ou IPOs. 

Deve tudo — ou quase tudo — a contratos públicos. Uma demanda pública foi o que sustentou a evolução tecnológica da empresa.  

No gráfico abaixo, veja a evolução do recebimento de recursos provenientes dos 57 contratos firmados pela Boston Dynamics e o governo dos EUA, entre 2008 e 2025.

Dos 57 contratos, 21 foram de serviços de P&D. Ou seja, ao todo, na forma de contrato, foram repassados à empresa quase US$ 200 milhões a preços de 2025, entre 2008 e fevereiro deste ano. 

Mas esse valor é muito pequeno se for comparado ao que receberam, na forma de encomendas tecnológicas, as empresas Lockheed Martin e Boeing, por exemplo, cujos contratos somam dezenas de bilhões de dólares.

Evolução do aporte de recursos do governo federal dos Estados Unidos a partir de contratos com a Boston Dynamics, 2008- fevereiro/2025 (US$ a preços de 2025)

Fonte: USAspending

Um cachorro barulhento

O BigDog, robô quadrúpede que fez a fama inicial da Boston Dynamics, foi encomendado pela DARPA com um objetivo muito pragmático: ajudar soldados a carregar equipamento em terrenos hostis. 

O contrato, firmado no início dos anos 2000, pagava por etapas: pesquisa, desenvolvimento, protótipos e testes em campo. Cada linha do projeto respondia a exigências definidas em edital, com metas técnicas claras — autonomia, capacidade de carga, equilíbrio, resposta a comandos.

O apoio público não se deu, portanto, no sentido de financiar desenvolvimentos tecnológicos guiados pelas estratégias de mercado da empresa, mas no sentido de encontrar respostas para desafios específicos do campo de batalha. 

Ou se busca um desenvolvimento tecnológico útil à luz do desafio selecionado ou abandona-se o projeto.

O BigDog não chegou a ser usado em combates reais. Era barulhento demais. Mas, como todo projeto de pesquisa e desenvolvimento com risco tecnológico, seu valor não estava apenas no produto, mas na curva de aprendizado.

Caso você pense que ainda vai demorar para termos soldados-robô e, por isso, tais contratos ainda vão demorar para dar frutos, lembre-se: as mais modernas aplicações comerciais em robótica vieram justamente daí. 

Sem todas as encomendas tecnológicas que permitiram desenvolver o BigDog, não haveria o Atlas, outro robô da empresa. E não é só isso.

A manutenção de uma demanda estatal extremamente sofisticada é a principal razão da sobrevivência da Boston Dynamics nos primeiros e mais difíceis anos de sua existência. Interessante, não? 

O Estado demanda um desenvolvimento tecnológico super incerto; esse desenvolvimento não atinge o exato objetivo, mas dele surge uma família inteira de robôs, agora sim, desejada pelo mercado. 

Seria algo como se o Estado se tornasse o “catalizador do impossível” (bem piegas, eu sei). E, ao longo do processo, uma empresa externamente inovadora e disruptiva é fomentada. 

O conhecimento acumulado pavimentou o caminho para robôs mais silenciosos, robustos e eficientes. Spot e Atlas são, em última análise, netos do BigDog. 

A impressionante evolução, que se inicia com o One-Leg Hooper ainda em Carnegie Mellon e MIT, está diretamente ligada ao atendimento a demandas muito específicas traduzidas em contratos com objetivos claros.

O que foi decisivo para essa rápida evolução tecnológica? 

Em encomendas tecnológicas, enquanto o privado se esforça para tentar descobrir uma solução que ainda não existe, o Estado assume a maior parte do risco tecnológico (ou melhor, da pura incerteza), e isso é uma bela de uma “cenoura”, mesmo quando o interesse privado é menor. 

Essa cenoura pode ser tão nutritiva que garante a sobrevivência da empresa nas fases iniciais de seu crescimento. 

Esses contratos permitiram à empresa manter a propriedade intelectual, como previsto na legislação norte-americana (Bayh-Dole Act), e usar o aprendizado acumulado para desenvolver versões comerciais dos robôs. O governo norte-americano, por sua vez, reteve a licença de uso, bem como informações estratégicas de know-how.

Esse tipo de contrato acelera e direciona a mudança técnica, dando respostas rápidas que permitem trilhar uma trajetória tecnológica que, em última análise, culmina numa solução socialmente útil, ao mesmo tempo em que se garante sobrevivência a uma empresa que, de outra forma, não teria demanda imediata paras seus disruptivos produtos. 

Promover a mudança técnica a partir da serendipidade (descobertas acidentais) é parte essencial do sucesso de sistemas de inovação desenvolvidos, mas nem sempre é a melhor forma de resolver problemas concretos. 

No Brasil, temos de “mandar brasa” em soluções. Não podemos depender dos importantes, mas genéricos, crédito, subvenção, bolsas de pesquisa e fomento universidade-empresa. 

Não é por acaso que a Petrobras (nossa “Nasa”) é líder em águas profundas: ali se contratam serviços de pesquisa, desenvolvimento e inovação. 

E não me canso de lembrar o leitor, foi desses contratos que saiu a vacina da AstraZeneca e a aeronave KC-390 da Força Aérea Brasileira (FAB). Nesse tipo de encomenda, é a necessidade do usuário final quem comanda todo o processo. 

O mais legal de tudo isso é que o poder de compra do Estado é empregado para manter vivas empresas altamente inovadoras nos seus momentos mais críticos, que, se superados, permitem criar líderes tecnológicos mundiais, como foi o caso da Boston Dynamics. 

André Tortato Rauen é economista, doutor em política científica e tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Escola Superior do Tribunal de Contas da União (TCU). Também é assessor especial da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

Colunas

0 Comentários
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Receba nossa newsletter

Newsletter

Receba nossos conteúdos por e-mail. Preencha os dados abaixo para assinar nossa newsletter

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!
Cadastre-se na Newsletter do Science Arena