SOBRE
#Colunas
06.08.2024 meio ambiente

No meio do caminho havia um plástico

Embora a versatilidade dos plásticos tenha feito deles algo revolucionário, o preço cobrado do planeta é alto demais para ficarmos impassíveis diante da necessidade urgente de mudar esse paradigma

Nas profundezas do oceano: peixe morto após ingerir luva de borracha plástica em habitat marinho contaminado | Foto: Shutterstock

Imagine o escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) reescrevendo seu famoso poema No meio do caminho com uma reviravolta moderna: “No meio do caminho havia um plástico, havia um plástico no meio do caminho”. Em vez de uma pedra, o obstáculo que encaramos hoje é a onipresença do plástico em nosso cotidiano e, tragicamente, em nosso ambiente natural.

Como chegamos a este ponto? E o que isso significa para a nossa saúde e para o planeta?

Os plásticos são a invenção que marcou a transição do século XX. No início, com sua versatilidade e baixo custo, trouxeram uma revolução que facilitou nossas vidas de muitas formas. O que não se sabia é que essa comodidade teria um preço tão alto. E agora, vivemos uma era em que o Homo sapiens está lentamente se transformando em Homo plasticus.

O plástico está em toda parte. Desde as embalagens dos nossos alimentos até as fibras das nossas roupas, passando pelos brinquedos das crianças e os dispositivos eletrônicos que usamos a cada momento.

Ele é, ao mesmo tempo, uma bênção e uma maldição. Enquanto resolve muitos problemas de conveniência, cria uma crise ambiental e de saúde sem precedentes.

Para além dos plásticos, que podem ser vistos em praticamente todos os lugares onde os seres humanos habitam – e naqueles onde eles não habitam também –, existem os microplásticos e os nanoplásticos.

Microplásticos, essas minúsculas partículas que surgem da fragmentação do plástico, estão se infiltrando em todos os cantos do planeta. Eles são encontrados no solo em que nosso alimento é plantado, na água que bebemos e, assustadoramente, no ar que respiramos.

Há microplásticos nas profundezas dos oceanos, nos picos das montanhas mais altas e até mesmo no Ártico remoto. Isso é um lembrete constante da extensão do nosso impacto ambiental.

E o que isso significa para nós, seres humanos? Bem, a ciência ainda está descobrindo. Sabe-se que ingerimos microplásticos diariamente.

Magnitude do problema

Um estudo encomendado pela organização não governamental internacional World Wildlife Fund (WWF) e conduzido pela Universidade de Newcastle, na Austrália, revelou que, em média, as pessoas ingerem aproximadamente cinco gramas de plástico por semana, o equivalente ao peso de um cartão de crédito. 

É estimado que estejamos consumindo cerca de 2.000 partículas de microplásticos semanalmente, somando aproximadamente 21 gramas por mês e pouco mais de 250 gramas por ano.

Os microplásticos são ingeridos principalmente através da água potável (tanto engarrafada quanto da torneira), bem como alimentos como mariscos, cerveja e sal.

Frente a isso, a pesquisa destaca a urgência de ações globais para combater a poluição por plásticos e mitigar seus impactos no meio ambiente e na saúde humana.

É uma imagem perturbadora imaginar um cartão de crédito plástico sendo consumido semanalmente. Mas as implicações vão além do nojo que essa imagem possa nos causar.

Os microplásticos podem carregar substâncias tóxicas, metais pesados e outros produtos químicos prejudiciais que, acumulados no corpo, podem causar uma série de problemas de saúde, dos quais ainda não sabemos a magnitude em longo prazo.

A exposição contínua aos microplásticos pode levar a inflamações, danos celulares e interferência no sistema endócrino, afetando o crescimento e desenvolvimento.

O que estamos vendo em animais – desde peixes com estômagos cheios de plástico até aves marinhas morrendo de fome com o intestino bloqueado – pode ser um prenúncio do que está por vir para nós.

Não poderia deixar de citar o excelente documentário Albatross, de Chris Jordan, fotógrafo americano que visitou o Atol de Midway (no meio do Oceano Pacífico, a 2.100 km de Honolulu) e, ao fotografar um filhote de albatroz morto, reforçou a discussão sobre a poluição plástica nos oceanos. E isso foi em 2009.

Microplásticos podem carregar substâncias tóxicas, metais pesados e outros produtos químicos prejudiciais que, acumulados no corpo, podem causar uma série de problemas de saúde | Foto: Shutterstock

Infelizmente, as milhares de aves mortas, com seus conteúdos estomacais repletos de produtos de plásticos, como tampas de garrafa, escovas de dentes, registradas também por outros fotógrafos, não foram suficientes para medidas mais efetivas de consumo e descarte de plástico no cotidiano da população mundial.

Riscos à saúde humana

Em mamíferos, incluindo roedores usados em estudos laboratoriais, os microplásticos têm sido ligados a inflamações e toxicidade nos órgãos, além de impactos negativos no sistema reprodutivo.

Essas evidências em animais servem como um alerta sobre os potenciais riscos à saúde humana, uma vez que compartilhamos muitos processos biológicos semelhantes.

Nos seres humanos já existem evidências de contaminação em cirurgia cardíaca (na própria sala cirúrgica em decorrência de elevada concentração de plástico local), da presença de microplásticos nas placas de ateroma (o que aumenta em mais de quatro vezes o risco de alguma intercorrência vascular).

O fato de sabermos que também atravessam a barreira placentária podendo chegar ao cérebro do feto, e de que os nanoplásticos podem atingir as mitocôndrias, são somente uma ponta do iceberg, cujas consequências ainda desconhecemos.

No meio do caminho havia um plástico

Essa frase ecoa em nossa mente enquanto refletimos sobre a crescente desconexão entre os seres humanos e a natureza. A cada dia que passa, mergulhamos mais fundo em uma existência cercada por materiais sintéticos, esquecendo a essência do mundo natural que nos sustenta.

Uma parcela da população vive iludida por uma sensação de controle e abundância que é, na verdade, profundamente insustentável e ameaça, ainda mais, as populações vulneráveis para as quais as questões de saneamento são críticas.

Mas nem tudo está perdido. Há uma onda crescente de conscientização e ação contra a proliferação do plástico.

Países estão proibindo plásticos de uso único, cidades estão promovendo reciclagem e economia circular e cientistas continuam na busca por desenvolver materiais que sejam biodegradáveis e menos prejudiciais ao meio ambiente e, consequentemente, aos seres humanos e não humanos.

A transformação de Homo sapiens para Homo plasticus não é uma sentença inevitável. Se estivermos atentos.

Temos a capacidade de reverter esse curso, de nos reconectarmos com a natureza para criarmos um futuro mais sustentável. Cada pequena ação conta – desde recusar uma sacola plástica até apoiar políticas públicas que visem a redução do plástico.

A mudança começa em nossas casas, nas nossas escolhas diárias, e se estende para a comunidade e além.

No meio do caminho havia um plástico. E ainda há. Mas a pergunta que devemos nos fazer é: queremos continuar nesse caminho? Ou estamos dispostos a construir uma nova estrada, onde a natureza e a tecnologia possam coexistir de forma harmoniosa, sem sacrificar a saúde do planeta?

A resposta está em nossas mãos e em nossas ações. Que possamos, um dia, olhar para trás e ver que escolhemos o caminho certo, o da reconexão com a natureza e de comprometimento com um futuro sustentável.

E assim, a cada passo, podemos ter um plástico a menos no meio do caminho e seguir em frente, com a esperança de um mundo mais limpo e mais saudável. Afinal, se no meio do caminho havia um plástico, é nossa responsabilidade garantir que, em breve, ele não esteja mais lá.

Eliseth Leão é pesquisadora sênior do Hospital Israelita Albert Einstein e líder do Grupo de Pesquisa e-Natureza: estudos interdisciplinares sobre conexão com a natureza, saúde e bem-estar (CNPq).

 

 

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

Colunas

0 Comentários
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Receba nossa newsletter

Newsletter

Receba nossos conteúdos por e-mail. Preencha os dados abaixo para assinar nossa newsletter

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!
Cadastre-se na Newsletter do Science Arena