
É preciso mitigar a doença renal do diabetes
Desenvolver novas terapias é essencial para diminuir impactos do diabetes mellitus em pessoas acometidas pela doença

O diabetes mellitus (DM) é uma doença crônica não-transmissível que afeta 10% da população mundial, independentemente de idade, sexo ou raça.
Didaticamente, o DM é classificado em tipo 1 (DM1), com componente autoimune, e tipo 2 (DM2), de herança genética e associada a fatores de risco bem conhecidos, como idade, obesidade e sedentarismo.
A doença renal do diabetes (DRD) é uma das complicações crônicas do DM, fazendo parte do espectro do acometimento sistêmico desta doença juntamente com alterações da visão e da circulação, neuropatia e eventos cárdio-cerebrovasculares.
O diagnóstico laboratorial da DRD – principal causa de necessidade de terapia substitutiva da função renal no mundo – está fundamentado na avaliação da redução da taxa de filtração glomerular e na presença de albuminúria, os quais indicam problemas renais.
Dessa forma, o desenvolvimento de terapias que evitem a progressão da DRD para estágios mais avançados é de suma importância para reduzir o impacto da morbimortalidade desta doença.
Dentre as terapias disponíveis atualmente, destacam-se medidas não-farmacológicas, como a incorporação de hábitos de vida saudáveis, e medidas farmacológicas, que buscam o controle da glicemia, da albuminúria, da pressão arterial e da dislipidemia (desequilíbrio nos níveis de gordura no sangue).
Na progressão da DRD, várias vias de sinalização se encontram desreguladas, como vias de inflamação, estresse oxidativo, morte celular, autofagia, fibrose e senescência, o que torna o tratamento da DRD um dos maiores desafios da prática clínica atual.
Os pilares da terapia farmacológica para a DRD contemplam suas bases patofisiológicas, tendo como alvo o controle das disfunções metabólicas, hemodinâmicas e inflamatórias.
Essa terapia inclui a combinação dos bloqueadores do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA), inibidores do co-transporte sódio-glicose-2 (iSGLT2), os agonistas do glucagon-like peptide-1 (GLP-1) e antagonistas dos receptores mineralocorticoides.
Esse arsenal terapêutico farmacológico e não-farmacológico contribui substancialmente para mitigar a progressão da DRD e reduzir outras complicações, particularmente os eventos cárdio-cerebrovasculares.
Numericamente, nos pacientes com DRD que utilizam os bloqueadores do SRAA e iSGLT2, a queda anual da taxa de filtração glomerular reduz de aproximadamente 10 ml/min/1,73 m2 para 2-3 ml/min/1,73 m2. No entanto, esta redução persiste ainda em valores superiores quando comparados à redução da população geral acima de 40 anos (~ 0,7-0,9 ml/min/1,73 m2).
Novas terapias
Nesse cenário, novas terapias são necessárias para diminuir o impacto do DM em diversos órgãos e melhorar a qualidade de vida de pacientes acometidos por esta doença.
Para o DM1, pesquisas envolvendo a diferenciação de células em embrionárias e em pancreáticas humanas estabeleceram as bases científicas para estudos mais recentes, utilizando fibroblastos autólogos reprogramados para se diferenciarem em células produtoras de insulina, com resultados iniciais promissores.
O potencial terapêutico das células derivadas da medula óssea, incluindo hematopoiéticas e mesenquimais, tem sido avaliado em relação ao seu rico secretoma (conjunto de proteínas e moléculas secretadas pela superfície celular) e ao impacto na modulação das vias desreguladas do DM.
No entanto, as análises dos desfechos de segurança e eficácia da terapia celular para o DM1, principalmente a longo prazo, estão ainda em fase inicial. Outra abordagem inclui o uso de ilhotas pancreáticas de doadores falecidos para restaurar o pool de células produtoras de insulina.
Vários avanços já foram documentados, como adequação do número de ilhotas, seu encapsulamento para mitigar o efeito do sistema imunológico e a avaliação de diversos sítios para sua infusão, dentre outros.
Apesar de ser uma terapia segura e eficaz, o transplante de ilhotas requer o uso de medicações imunossupressoras que podem afetar o próprio funcionamento destas ilhotas e causar outros eventos diversos, como infecção e alterações da função renal.
Por outro lado, o tratamento do DM1 tem sido amplamente refinado com o uso de esquemas eficazes de insulina de longa ação combinada com insulinas de ação rápida ou ultrarrápida e contagem de carboidratos, além da disponibilidade do uso da bomba de insulina.
A verificação em tempo real dos valores glicêmicos tem adicionado maiores segurança e eficácia ao controle da glicemia, ao mesmo tempo em que permitem a individualização do tratamento.
Outras inovações tecnológicas incluem a administração semanal de insulina e o uso do sistema automatizado de infusão de insulina, também conhecido por “pâncreas artificial”, o que permite a liberação da dose ideal de insulina para o controle glicêmico.
No caso de pacientes com DM2, existe inicialmente uma resistência à ação da insulina, e antidiabéticos são administrados por via oral ou via subcutânea. Numa fase mais avançada da doença, o esquema terapêutico para esses pacientes passa a incluir insulina.
Em relação às terapias celulares para pacientes com DM2, em particular com células-tronco mesenquimais, grandes desafios ainda necessitam ser superados.
Essas células podem ser obtidas de diversas fontes, como medula óssea, tecido adiposo e cordão umbilical, dentre outros. No entanto, pacientes com DM2 geralmente têm idade mais avançada do que os pacientes com DM1, e apresentam múltiplas comorbidades quando a DRD é diagnosticada.
Dessa forma, as propriedades biológicas das células-tronco mesenquimais podem encontrar-se reduzidas, limitando seu potencial terapêutico na prática clínica. Além disso, a hiperglicemia crônica promove alterações gênicas, estruturais e funcionais no nicho das células-tronco mesenquimais, comprometendo ainda mais seu potencial terapêutico.
No entanto, as células-tronco mesenquimais são desprovidas de antígenos classe II do sistema HLA (human leukocyte antigens), permitindo que elas sejam “imuno-privilegiadas” e não sejam rejeitadas quando obtidas de outro indivíduo saudável, além de não se diferenciarem significativamente em outros tipos celulares quando infundidas.
Bancos celulares
Essas particularidades abrem a perspectiva da criação de bancos de células-tronco mesequimais, as quais poderão ser utilizadas para tratamento de diversas doenças de forma “off-the-shelf”.
Estudos iniciais com essas células em pacientes com DRD e DM2 demonstraram segurança e eficácia para preservação da função renal. No entanto, vários aspectos têm sido debatidos na literatura, como os números ideais de células e infusões, o intervalo das infusões e via de administração.
A padronização do uso dessas células por meio de diretrizes tem permitido a comparação adequada entre os estudos e a normatização da análise dos desfechos de segurança e eficácia.
Sendo assim, não apenas parâmetros de infecção e estabilidade cromossômica são analisados, como também sua caracterização, por meio de imunofenotipagem, diferenciação e potência.
Um ponto em comum para o uso da terapia celular em pacientes com DM1 e DM2 é o controle adequado da glicemia durante a infusão das células, para que mantenham um funcionamento eficaz.
Além disso, o potencial das células-tronco mesenquimais pode ser incrementado pelo condicionamento pré-infusão, incluindo condições reduzidas de oxigênio (hipóxia), medicamentos, fatores de crescimento e transfecção gênica.
O uso do secretoma dessas células (exossomos e microvesículas) também tem sido explorado no cenário do DM e DRD.
Nosso grupo de pesquisa no Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein tem investigado o potencial terapêutico das células-tronco mesenquimais e de medicações comumente utilizadas em pacientes com DM2 (empagliflozina e semaglutida) por meio da compreensão da modulação das vias de sinalização de inflamação, estresse oxidativo, morte celular e autofagia.
Para isso, utilizamos um modelo de camundongos geneticamente modificados de DM2 e obesidade, que apresentam alterações estruturais e funcionais renais semelhantes a seres humanos, o que os torna o modelo ideal para avaliação da segurança e eficácia de novas terapias.
Dessa forma, o entendimento biológico da modulação das vias de sinalização que se encontram desreguladas no DM2 e obesidade, com o uso da terapia multialvo, permitirá o avanço dos estudos em seres humanos no cenário da pesquisa pré-clínica.
Assim, essa plataforma de pesquisa corrobora a importância dos estudos do tipo bancada-paciente-bancada para a definição da melhor abordagem terapêutica para doenças complexas e multifacetadas como DM e DRD.
Érika Bevilaqua Rangel é médica, mestre e doutora em nefrologia e professora do Programa de Pós-Graduação do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, onde realiza pesquisas com células-tronco e coordena o Núcleo de Inteligência Einstein (NIE), criado para gerar informações claras e confiáveis sobre a covid-19 para profissionais da saúde e população. Coordenadora do Departamento de Fisiologia e Fisiopatologia Renal da Sociedade Brasileira de Nefrologia, é também professora adjunta de Nefrologia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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