SOBRE
#Ensaios
03.12.2024 meio ambiente

Você sabe quanto há de mercúrio em seu corpo?

A ampla presença e permanência de mercúrio no ambiente requer uma adequada vigilância em saúde e reforça a importância de evidências científicas para sanar o problema

O mercúrio é usado para amalgamar o ouro, separando o metal precioso dos demais sedimentos; processo viabiliza o garimpo, porém impacta o ecossistema | Imagem: Shutterstock

Quando pergunto às pessoas quanto de mercúrio há em seu corpo, a expressão da maioria indica confusão, pois provavelmente nunca pensaram nisso, e reações como “…mas eu não estou exposto, certo?” são frequentes.

Entretanto, notícias sobre comunidades expostas a esse metal pesado altamente prejudicial à saúde são comumente conhecidas. Isso é apenas um indicativo do grande desafio que a vigilância em saúde pública enfrenta quando falamos de contaminação ambiental.

Atualmente, uma em cada seis mortes no mundo é causada pela poluição ambiental, um fenômeno que atinge desproporcionalmente o Sul global, onde acontecem cerca do 90% dessas mortes causadas pelo ambiente contaminado.

No Brasil, o problema da presença de mercúrio no ambiente é um dos melhores exemplos para analisarmos os desafios na vigilância em saúde.

Muitos brasileiros sabem que o mercúrio é usado nos garimpos para a extração do ouro, mas poucos sabem que ele também é encontrado em produtos consumidos no dia a dia, como cosméticos e algumas lâmpadas fluorescentes.

Mas a maioria não sabe que, mesmo em temperatura ambiente, uma parte do mercúrio está continuamente evaporando, e que ele pode perdurar no ar por décadas e ainda percorrer distâncias tão longas como do Brasil ao Polo Ártico.

O problema da presença de mercúrio no ambiente, portanto, não é limitado por distâncias ou fronteiras.

Esse foi o cerne da Convenção de Minamata sobre Mercúrio, tratado internacional que reúne 149 países até agora e que foi internalizado pelo Brasil em 2018, por meio do Decreto nº 9.470.

Antes da pandemia de covid-19, o Brasil já estava entre os cinco países que mais contribuíam para as emissões globais de mercúrio.

O cenário piorou nos últimos anos, quando, apesar da pandemia, tivemos uma explosão da atividade garimpeira no país, caracterizando uma nova “corrida do ouro”, que perdura até hoje.

Soma-se a isso máximos históricos de queimadas e desmatamento, que contribuem para aumentar as emissões, ao devolverem para o ar o mercúrio depositado nas folhas da floresta.

De acordo com a Agência Europeia do Meio Ambiente, existe já tanto mercúrio no nosso entorno que, mesmo que amanhã parassem todas as ações do homem que liberam mercúrio, demoraria vários séculos para essa substância conseguir ser fixada de novo no solo de forma significativa.

Além da onipresença e perdurabilidade desse contaminante, outro problema adicional é a demora até a aparição de sintomas evidentes e sua grande variabilidade.

Desde dificuldades de aprendizagem até hipertensão, o mercúrio causa uma grande diversidade de sinais e sintomas.

No Brasil, a intoxicação mercurial ou suspeita de intoxicação é de notificação compulsória, como acontece com outras doenças, como a covid-19. Apesar disso, em julho de 2023, apenas 668 casos relativos ao período de 2007 a 2022 tinham sido registrados oficialmente em todo o país.

Quase todos os estados brasileiros registraram casos de intoxicação, demonstrando a ubiquidade da exposição humana a esse metal. Contudo, pouco mais de 15% dos casos foram na Amazônia, a região de onde provém a maior parte das emissões da América do Sul.

LEIA MAIS: Ameaças históricas – pesquisadores buscam entender doenças que afetam populações indígenas no Brasil | Imagem: Rômolo D’Hipólito/Estúdio Voador

O Estado do Amapá, por exemplo, nunca relatou nenhum caso. No entanto, a literatura científica demonstra a alta prevalência de sinais e sintomas de intoxicação na população amazônica, o que ilustra a grave subnotificação nesta região.

Essa situação é preocupante, considerando a necessidade da alocação eficiente de recursos baseada em evidências.

Prevenção e diagnóstico

Entender o caráter onipresente e duradouro do mercúrio, os desafios para uma adequada vigilância em saúde nesse tema e a importância das evidências científicas no planejamento e tomada de decisões, nos ajuda a explicar as limitações que soluções simplistas e pouco realistas, baseadas em pressupostos que não consideram as múltiplas camadas de uma realidade complexa, encontram para abordar o problema.

Assim, ao lidar com a exposição ao mercúrio ou outras formas de intoxicação exógena que afetam populações vulnerabilizadas, é essencial capacitar e garantir que os profissionais de saúde estejam devidamente treinados para identificar, diagnosticar e relatar os casos.

É urgente desenvolver e validar ferramentas de triagem diagnóstica adaptadas para ajudar o trabalho dos profissionais de saúde, tornando essas ferramentas amplamente disponíveis para uso entre as diversas populações e culturas do Brasil.

Além disso, sendo o cérebro o principal órgão-alvo do mercúrio, e com capacidade muito reduzida de recuperação total após qualquer dano, o foco principal deve estar também na prevenção, e não apenas no diagnóstico.

Na Amazônia, por exemplo, o exame de mercúrio no cabelo e na urina deveria ser frequente e rotineiro.

Para isso, os investimentos também devem se concentrar na melhoria da infraestrutura local, como o aumento do número de analisadores de mercúrio e de equipes capacitadas no biomonitoramento que residam permanentemente na região.

Essa abordagem permitirá entender o cenário real e apoiar intervenções baseadas em evidências.

Iniciativas públicas

De acordo com um levantamento sistemático, na Amazônia brasileira as equipes de pesquisa com experiência comprovada em biomonitoramento humano estão principalmente localizadas nas universidades federais.

Fortalecer essas equipes da região amazônica permite aproveitar a infraestrutura existente e a capilaridade social dessas instituições públicas sem sobrecarregar excessivamente o sistema de saúde.

Ademais, o entendimento profundo que essas instituições possuem do contexto amazônico lhes fornece a experiência necessária para implementarem estratégias de prevenção locais e sensíveis à cultura.

Assim, iniciativas como o Instituto Amazônico do Mercúrio (Iamer), liderado por universidades públicas amazônicas com o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, se perfilam como investimentos com impactos duradouros.

É importante também levar em consideração que a combinação de diferentes susceptibilidades e situações de vulnerabilidade (dos diferentes grupos populacionais no Brasil) torna o monitoramento ambiental do mercúrio (em água, solo, ar, plantas e animais) insuficiente como uma estratégia de prevenção para a saúde humana.

Por exemplo, dados recentes sobre peixes piscívoros (que se alimentam de outros peixes) nos mercados amazônicos mostram níveis médios de mercúrio de 0,603 partes por milhão (ppm), considerados adequados para o consumo humano segundo a legislação brasileira (que permite até 1 ppm de mercúrio em peixes piscívoros).

No entanto, isso significa que uma única refeição de 200 gramas de peixe piscívoro, como a traíra e o jundiá, pode ser suficiente para exceder o consumo máximo semanal de mercúrio recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Infelizmente, a legislação brasileira desconsidera a cultura e os padrões alimentares das comunidades tradicionais amazônicas (indígenas, ribeirinhos e quilombolas) que, muitas vezes, consomem peixes diariamente.

Muitas destas comunidades tradicionais mantêm conexão estreita com o ambiente ao redor, o que as torna as primeiras a experimentar os impactos da poluição ambiental.

Estabelecer diretrizes brasileiras sobre o consumo máximo de mercúrio e a carga corporal é altamente recomendável, pois ajudaria a detectar a exposição humana e prevenir a intoxicação.

Essas recomendações brasileiras, unidas à aplicação rotineira de formulários padronizados que avaliassem o consumo alimentar, poderiam funcionar como estratégia de detecção precoce de indivíduos de risco.

Adicionalmente, o Brasil poderia aproveitar a presença dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes Indígenas de Saúde que atuam junto às populações vulnerabilizadas para também adaptar essas recomendações – respeitando as práticas culturais das comunidades, melhorando a adesão e facilitando a identificação precoce de indivíduos de alto risco.

Se quiser que algumas destas recomendações se tornem realidade, e você possa saber o quanto de mercúrio tem no seu corpo, comece apoiando e acompanhando o Projeto de Lei nº 1.011/2023, que tramita no Senado, para instituir a Política Nacional de Prevenção da Exposição ao Mercúrio.

Maria Elena Crespo López é professora titular da Universidade Federal do Pará (UFPA) – Laboratório de Farmacologia Molecular (LFM) -, coordenadora do Instituto Amazônico do Mercúrio (IAMER) e integrante do Global Mercury Partnership do United Nations Environment Programme.

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Hospital Israelita Albert Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

Ensaios

0 Comentários
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Receba nossa newsletter

Newsletter

Receba nossos conteúdos por e-mail. Preencha os dados abaixo para assinar nossa newsletter

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!
Cadastre-se na Newsletter do Science Arena