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Jorge Kalil: fazer vacinas no Brasil é luta de Davi contra Golias

País não investe o suficiente em tecnologia para desenvolver e produzir imunizantes contra as principais ameaças à saúde pública, avalia ex-diretor do Butantan

Jorge Kalil, da USP: “Queremos que haja equidade na saúde. É fundamental que tenhamos várias plataformas de vacinas” | Foto: Divulgação/USP

No primeiro trimestre de 2020, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) convidou dois cientistas para coordenar pesquisas para o desenvolvimento de imunizantes contra o vírus Sars-CoV-2, causador da covid-19.

Um deles era o imunologista Ricardo Gazzinelli, coordenador do Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), responsável por comandar o desenvolvimento da SpiN-Tec-MCTI-UFMG, formulação candidata à vacina conta covid-19.

O outro pesquisador era o também imunologista Jorge Kalil, da Universidade de São Paulo (USP), que optou por fazer uma vacina nasal, aplicada em forma de spray.

Em entrevista ao Science Arena, Kalil – que dirigiu o Instituto Butantan entre 2011 e 2017 – detalhou como está o processo de desenvolvimento da vacina nasal, explicou as razões e salientou as dificuldades de fazer ciência no Brasil. Uma delas é a chamada “fuga de cérebros”, classificada por ele como “uma vergonha.”

“Temos que ter cientistas e tecnólogos capazes de atuar em toda a cadeia produtiva, da descoberta da molécula ao desenvolvimento do produto”, afirma Kalil, que é professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do laboratório de imunologia do Instituto do Coração (InCor) da mesma universidade.

Science Arena – Em maio, o senhor participou do evento TEDxUSP, no qual destacou desafios para criar uma vacina nasal contra a covid-19. Como este trabalho começou?

Jorge Kalil – No início da pandemia de Covid-19, o MCTI escolheu a mim e o Ricardo Gazzinelli, coordenador do CTVacinas, para o desenvolvimento de imunizantes contra o Sars-CoV-2. Gazzinelli foi comandar os estudos da SpiN-TEC, enquanto meu grupo optou por fazer uma vacina nasal. Reuni pessoas que poderiam me ajudar e que trabalhavam comigo no Incor e na Faculdade de Medicina da USP, assim como pessoas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e da Universidade Federal de São Paulo [Unifesp].

Por que o grupo escolheu este caminho, o de desenvolver uma vacina nasal?

Partimos de um conhecimento prévio com o vírus Sars-CoV-1, causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave [Sars], que emergiu em 2002 e que, apesar da alta letalidade, foi controlado na China.

Houve uma resposta importante de anticorpos, chamados de neutralizantes, que impediam o vírus de entrar na célula para se multiplicar. Com isso, soube-se que a ação dos anticorpos ocorria na proteína spike, usada pelo vírus para invadir células.

Portanto, sabíamos que, em grande parte, os estudos seriam diretamente voltados para uma vacina que inibisse essa proteína. O vírus começou a mutar e surgiram variantes. Também foi importante observar que a CoronaVac [produzida pela empresa chinesa Sinovac e embalada pelo Instituto Butantan], uma vacina de vírus completo e inativado, é um imunizante ruim, com eficácia de cerca de 50% e sem ter sido testada em indivíduos mais velhos, que são os mais suscetíveis à doença.

Fomos então para as vacinas de RNA, que eram bem melhores.  Com esse conhecimento, ainda no começo da pandemia, pensamos em desenvolver uma vacina intranasal, porque o vírus entra pelo nosso nariz.

Então foi o fato de o vírus entrar pelo nariz o principal motivador?

Sim. Com a nossa vacina, chegamos na célula da mucosa e induzimos a resposta, algo que não ocorre com as vacinas intramusculares. O segredo está, justamente, em inativar o vírus na entrada, antes que se multiplique na mucosa, que é algo que facilita a transmissão para outras pessoas. As vacinas intramusculares não impedem a infecção e a doença leve, justamente porque o vírus se multiplica. 

Como foi a evolução das etapas já cumpridas e em que momento pré-clínico ou clínico se encontra o desenvolvimento da vacina nasal?

Durante a fase a pré-clínica, injetamos o vírus na narina de modelos animais e, rapidamente, o vírus desapareceu, por conta da imunoglobulina IgA secretória (um tipo de anticorpo) que há ali. Agora, estamos preparando o antígeno.

No Brasil, ainda não temos empresas com capacidade industrial de desenvolvimento. Mas investimos US$ 4 milhões para contratar uma empresa no exterior, que vai pegar o antígeno e colocá-lo em célula. Poderemos iniciar a fase clínica de pesquisa, com testes em humanos, até o final de 2024.

Na fase pré-clínica, vocês descrevem que houve 100% de resposta. Há garantia de que o resultado se repetirá em humanos?

Em camundongos, obtivemos 100% de resposta, mas, embora eles sejam geneticamente muito semelhantes aos humanos, há uma heterogeneidade genética, social, econômica e higiênica. São, portanto, muitos os fatores que podem alterar a resposta que iremos obter na fase clínica, com humanos.

Além desta heterogeneidade, quais são outros obstáculos?

Até o momento, as primeiras dificuldades que enfrentamos são relacionadas ao subfinanciamento, ou seja, bolsas de pesquisa com valores muito baixos.

É difícil atrair estudantes e pesquisadores com pós-doutorado, pois o investimento em pesquisa no Brasil está defasado.

Outro agravante é que, como reflexo da pandemia, os países não estavam exportando insumos de laboratório. No Brasil, não há produção de insumos e eles estavam demorando muito para chegar do exterior, pois existia uma regra de favorecer os laboratórios locais, no país produtor.

Ao todo, incluindo produção e escala industrial, recebemos R$ 40 milhões, ou seja, cerca de US$ 8 milhões. Enquanto isso, nos Estados Unidos, foi lançado um edital em que estão distribuindo, para cada grupo de pesquisa, aproximadamente US$ 500 milhões de dólares para desenvolver a vacina. É uma disputa de Davi contra Golias.

Caso essas etapas sejam superadas e a vacina nasal se mostre eficaz, o que podemos esperar dela?

Nossa vacina será definitiva, porque é de facílima administração, as pessoas não são resistentes a ela e este imunizante protege contra a infecção e a transmissão. Com isso, vamos controlar a doença. Para tanto, precisamos convencer os políticos a investir.

No Brasil, não temos a cultura de que podemos resolver os nossos problemas. Sempre se acha que precisamos de alguém de fora para isso.

Nós estamos com uma vacina da dengue, que eu comecei a trabalhar quando era diretor do Instituto Butantan, em São Paulo. Fizemos todo o desenvolvimento industrial, desenvolvimento clínico de fase 2 e começamos a fase 3 em 2016.

Porém, não foi dada a celeridade necessária. Essa vacina tinha que já estar pronta. O [médico] Dimas Covas, que foi o diretor do Butantan, não deu a prioridade necessária para o teste desta vacina [contra a dengue].

O imunizante do Butantan já tinha que estar aí protegendo os milhões de brasileiros que tiveram dengue, com grande número de mortes.

Como está o Brasil no contexto mundial de produção de vacina? Quais são nossos pontos fortes e fracos? Ainda não temos a capacidade de desenvolver e produzir as vacinas para vírus que representam grandes ameaças. Enquanto isso não ocorre, ficamos extremamente dependentes dos outros países. O Brasil não investe suficientemente para que seja tecnologicamente independente.

Temos que ter cientistas e tecnólogos capazes de atuar em toda a cadeia produtiva, da descoberta da molécula ao desenvolvimento do produto.

Nós fazemos muito poucos ensaios clínicos de fase 1 e 2. Todos os países desenvolvidos têm essa capacidade. Na China, não se desenvolve tecnologia porque a mão de obra é barata. Pensar isso é um erro que as pessoas cometem. O que tem na China é um eficiente sistema de educação e de capacitação de pessoal técnico-científico. Eles fazem qualquer coisa na China. E conseguem fazer ainda com preço barato, porque sabem utilizar direitinho os materiais.

O Brasil precisa aprender que um país grande – e que tem pretensões de ser uma grande nação – tem que ter ciência e desenvolvimento tecnológico.

Infelizmente, o que temos observado nos últimos tempos é que os nossos grandes cérebros cansaram do Brasil e foram embora. Eu tenho uma quantidade enorme de ex-alunos que estão concentrados em três lugares: região de Nova Iorque, região de Boston e no estado a Califórnia, especialmente em São Francisco e Los Angeles. É uma vergonha. Nós perdemos essas pessoas.

Os resultados preliminares do desenvolvimento da vacina nasal não foram publicados em revista científica? Em que momento isso vai ocorrer?

Não publicamos, porque queríamos que a vacina permanecesse brasileira. Se fossem dados fundamentais para que a gente pudesse conter a doença, teríamos divulgado.  Porém, como existiam já outras vacinas, não era essencial apresentar os nossos resultados preliminares. Estamos terminando de fazer a patente para, assim, publicar o artigo científico, que está sendo escrito. 

Qual precisa ser o olhar do mundo para a imunização de toda a população?

Existe um esforço mundial muito grande para que lugares na África e na Ásia também consigam produzir vacinas. O que se observou é que, na pandemia, pouco tempo depois de já existirem vacinas, nos países ricos tínhamos 90% da população imunizada com duas doses, enquanto nos países mais pobres esse percentual era de apenas 2%. E eram os 2% mais ricos daquela população.

Nós queremos que haja equidade na saúde. É fundamental que tenhamos várias plataformas de vacinas, que possam ser utilizadas com diferentes antígenos. Antígeno é superimportante, pois é o alvo da vacina. E somente se consegue isso fazendo pesquisa básica com vírus e entendendo como é a resposta protetora. Tem que haver continuidade nos investimentos de ciência e tecnologia, para que não caiamos no buraco de sempre.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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