#Entrevistas
José Gomes Temporão: “Prevenção precisa nortear luta contra o câncer”
Combate ao câncer vai além de tratamento e deve ser encarado como desafio sociopolítico, diz pesquisador da Fiocruz e ex-ministro da Saúde
José Gomes Temporão, da Fiocruz: “Câncer é problema multifacetado e medidas de prevenção podem efetivamente conter avanço da doença” | Imagem: Sérgio Velho Junior/Fiocruz Brasília
O câncer é a principal causa de morte em centenas de municípios brasileiros e uma das maiores ameaças à saúde global, com projeções de mais de 35 milhões de novos casos até 2050, segundo dados da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Apesar de avanços na detecção precoce e no tratamento de tumores, o médico sanitarista José Gomes Temporão, ministro da Saúde entre 2007 e 2011, faz um alerta: a aposta em tecnologias de alto custo, muitas vezes inacessíveis, não pode continuar sendo o eixo central das políticas contra o câncer.
“É fundamental que sistemas de saúde, pesquisadores, gestores públicos e a sociedade civil intensifiquem seus esforços no enfrentamento do câncer, colocando a prevenção e o diagnóstico precoce no centro das estratégias”, afirmou ao Science Arena.
Para Temporão, a ênfase na prevenção – sem deixar de lado a busca por acesso equitativo a tratamentos eficazes – é o que pode efetivamente conter o avanço do câncer e reduzir seu impacto crescente sobre a população.
Pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE/Fiocruz), Temporão tem defendido uma mudança de rota: substituir a reação tardia por políticas de antecipação, baseadas em prevenção, promoção da saúde e fortalecimento da atenção primária.
Sob essa perspectiva, o ex-ministro é um dos organizadores do Seminário Internacional Controle do Câncer no Século XXI: Desafios Globais e Soluções Locais, que ocorre nos dias 27 e 28 de novembro, no Rio de Janeiro, com transmissão ao vivo e participação de autoridades e especialistas de vários países.
Na entrevista a seguir, Temporão discute os impasses estruturais do enfrentamento da doença no Brasil, entre eles a dependência tecnológica. “O câncer é um problema multifacetado, que vai muito além da medicina: trata-se também de um desafio social e político”, resume.
Science Arena – No que consiste a complexidade do câncer?
José Gomes Temporão – É um problema hipercomplexo, pois são mais de uma centena de patologias bastante distintas.
Para além dos fatores genéticos, prevalecem os fatores de risco para o câncer: obesidade, sedentarismo, tabagismo, consumo de álcool, alimentos ultraprocessados, exposição ao sol, poluentes ambientais, substâncias cancerígenas no ambiente de trabalho.
O problema é multifacetado e extremamente complexo porque envolve desde políticas de promoção da saúde – educar, orientar e sensibilizar a população para esses fatores de risco – até o tratamento, que é muito complicado: quanto mais precoce o diagnóstico, melhor o prognóstico.
Envolve quimioterapia, cirurgia, radioterapia. Naqueles casos em que a medicina já não consegue oferecer esperança de cura, são necessários cuidados paliativos dignos e humanizados.
Qual é o problema central na forma como o tema é tratado hoje?
O tema do câncer costuma ser abordado prioritariamente pela ótica do tratamento, com foco em novas tecnologias e métodos terapêuticos, enquanto aspectos de promoção da saúde e prevenção são menos discutidos.
O seminário que realizaremos neste mês busca ampliar esse debate, abordando desde questões genéticas e ambientais até promoção, prevenção, diagnóstico e cuidados, destacando a complexidade e a necessidade de discutir múltiplos aspectos para além do tratamento convencional.
Como está a situação das políticas públicas no Brasil?
Do ponto de vista normativo – leis, normas e protocolos – estamos muito bem servidos. Temos uma lei, aprovada no ano passado, de atenção integral ao câncer, bastante avançada, talvez uma das mais avançadas do mundo.
No entanto, quando você olha para como essas políticas se expressam no cuidado, há inúmeras fragilidades: dificuldade de acesso, organização da linha de cuidado, tempo de espera para início do tratamento.
O seminário vai lançar luz sobre a atenção primária. Por que?
Isso pode surpreender algumas pessoas – afinal, o câncer, até onde o senso comum diz, remete logo para hospital, ressonância, quimioterapia, cirurgião.
Mas, na verdade, se queremos falar em diagnóstico precoce, promoção da saúde e prevenção, a base é fundamental.
Temos doenças preveníveis por vacinação: o HPV previne câncer de colo de útero; e câncer de fígado é prevenível pela vacina da hepatite B.
Contudo, quando você olha o nível de cobertura dessas vacinas hoje, em vários estados essa cobertura é baixa. Estamos sendo vítimas do que aconteceu durante a pandemia, da onda negacionista.
Agentes comunitários desempenham algum papel na luta contra o câncer?
Sem dúvida. No Brasil, o primeiro nível de contato do cidadão com o sistema de saúde é a saúde da família. Temos 150 milhões de brasileiros cobertos com o Programa Saúde da Família (hoje Estratégia Saúde da Família).
Os agentes comunitários de saúde vão mensalmente às residências, conversam, entram nas casas. Eles podem saber se tem alguém com consumo excessivo de álcool, se as vacinas estão em dia, se tem algum fumante, orientá-lo a parar e encaminhá-lo ao serviço do Sistema Único de Saúe (SUS).
Como as novas tecnologias podem ajudar na atenção básica?
A atenção básica é central. Com a revolução em termos de ciência e desenvolvimento de novas tecnologias de inteligência artificial [IA], não é delirante imaginar que, em um futuro muito próximo, teremos métodos diagnósticos muito precisos no consultório do médico de família, no território.
Por exemplo, a biópsia líquida: com uma amostra de sangue poderá diagnosticar várias patologias, inclusive neoplasias. Imagine o impacto disso em termos de cuidado e diagnóstico precoce.

Quando o senhor fala em prevenção, quais são as limitações que o campo da saúde enfrenta diante de grandes agentes econômicos?
É um ponto extremamente importante. O Brasil já tem um exemplo para o mundo: conseguimos banir a publicidade de cigarro de qualquer meio de comunicação. Reduzimos a prevalência de fumantes da população adulta de 30%, nos anos 1970 e 1980, para 10% agora. Infelizmente, agora a indústria mudou a estratégia e está seduzindo adolescentes e crianças para usar cigarro eletrônico.
Qual o papel da saúde pública nesse contexto?
O papel da saúde pública também é um papel de denúncia. Se me calo diante do fato de que o consumo de refrigerantes e alimentos ultraprocessados, ou a ausência de alimentos com fibras, pode levar muita gente a desenvolver câncer em alguns anos, estarei sendo desonesto. É claro que enfrentamos o tempo todo o lobby dessas indústrias.
Como questões sociais impactam a saúde?
Vamos falar de atividade física. A OMS recomenda 150 minutos por semana de caminhada ou alguma atividade física para prevenção de várias doenças, inclusive o câncer. Mas quando você analisa este tema, e se depara com várias condições estruturais que muitas vezes dificultam essa prática regular, entramos no que chamamos de determinação social da saúde – ou seja, a saúde é política e socialmente determinada.
Acabou de sair um dado impressionante de São Paulo: quando você analisa a mortalidade infantil no município, ela está em torno de 10 crianças que morrem antes de atingir um ano de idade em cada 1.000 nascidas.
Entretanto, quando analisa por bairro, você tem bairros onde a mortalidade é de 30 por 1.000 (bairros mais pobres) e bairros onde é de 5 por 1.000 (bairros mais ricos). A média nunca é um bom indicador – a média é 10 por 1.000, mas não expressa o impacto real.

Quando o câncer já está instalado, quais são os desafios?
A chance de cura do câncer é muito maior quando o diagnóstico e o início do tratamento acontecem rapidamente, mas atrasos nos processos — com longas filas para exames, cirurgias e acesso a medicamentos — ainda são frequentes no Brasil, variando conforme a região. Esperas prolongadas podem transformar um caso tratável em doença avançada, comprometendo o prognóstico do paciente e agravando as desigualdades de acesso ao tratamento oncológico.
O SUS consegue fornecer todas as tecnologias necessárias?
O orçamento do SUS dispõe de recursos financeiros para oferecer todas as tecnologias validadas internacionalmente, aprovadas pela Anvisa, para todos os brasileiros doentes de câncer? Hoje, não. Então tem toda uma dimensão econômico-financeira envolvida em todo esse debate.
Qual o papel da telemedicina no controle do câncer?
A telemedicina – ou, de maneira mais ampla, telessaúde, que envolve outros profissionais – pode ser uma ferramenta muito útil. Por exemplo, na atenção básica, quando o médico de família suspeita de alguma situação mas não dispõe das ferramentas necessárias para fechar o diagnóstico, ele pode fazer uma consulta em tempo real, até com o paciente ao lado, com especialista em qualquer grande centro.
Pode citar algum exemplo? Há iniciativas como o TeleAMES, um projeto do Einstein Hospital Israelita – no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), do Ministério da Saúde – que usa a telemedicina para tentar ampliar o acesso de populações de áreas mais remotas nas regiões Norte e Centro-Oeste a especialidades médicas.
Uma interconsulta entre o médico local e o especialista pode ajudar muito no diagnóstico e no tratamento.
Mesmo sem recursos locais para fechar diagnósticos, médicos de família, que atuam em postos de saúde e ambulatórios, podem consultar especialistas em tempo real e receber apoio técnico, agilizando o processo e reduzindo custos com deslocamentos.
O evento acontecerá dias depois da COP30. Como relacionar mudanças climáticas e câncer?
Esse talvez seja um dos desafios do nosso evento. A programação tenta colocar essa questão. A OMS estima que, já em 2030, possivelmente a primeira causa de morte em termos globais vai ser o câncer, e ele vai afetar de maneira desproporcional os países em desenvolvimento.
O maior número de mortes não acontece nos países desenvolvidos, acontece nos países em desenvolvimento – na África, América Latina e parte da Ásia.
É fundamental levar a discussão sobre clima e saúde para a sociedade.
Não é uma coisa simples, pois o pensamento hegemônico que predomina é a questão médica, do tratamento em si – é o que mobiliza mais recursos, mais paixões, mais polêmicas –, e não a da prevenção.
Quais as questões éticas envolvidas?
São questões extremamente importantes que você não pode descartar. Como a discussão sobre doenças raras: por exemplo, tem uma doença gravíssima que afeta 500 brasileiros que vão morrer. O tratamento é caríssimo, um absurdo, não tem como pagar. Trata ou não trata?
São questões éticas. No limite, quem tem que decidir isso não são os médicos, é a sociedade, com transparência e critérios.
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O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).
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