
“Queremos ciência feita na Amazônia, não só sobre a Amazônia”
População local deve ser protagonista em estudos feitos na região, afirma Marcel Botelho, presidente da fundação de amparo à pesquisa do Pará

São muitos os possíveis temas para se trabalhar em projetos científicos na Amazônia, conhecida por sua imensa biodiversidade e identidade cultural. Criada em 2007 no Pará, a Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa) é uma das instituições públicas dedicadas a apoiar a pesquisa e a inovação na Amazônia, tendo em vista o desenvolvimento econômico, social e ambiental da região.
À frente da entidade desde 2021, o agrônomo Marcel do Nascimento Botelho ressalta a importância de que a pesquisa feita na Amazônia gere resultados potencialmente benéficos para a população local – para além dos limites da academia.
O diretor-presidente da Fapespa se diz entusiasta de pesquisas participativas, nas quais cientistas e outros atores sociais (como povos originários e gestores públicos) trabalham em parceria em busca de soluções para problemas concretos, como os efeitos da crise climática.
“Não podemos mais aceitar apenas uma discussão sobre a Amazônia. Queremos promover uma discussão na Amazônia, envolvendo conhecimentos ancestrais e realidades locais”, diz Botelho, que foi reitor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) entre 2017 e 2021.
Em entrevista ao Science Arena, Botelho fala dos desafios de financiar projetos de pesquisa com foco na região amazônica e de ações como a Iniciativa Amazônia+10, que articula cientistas de 25 estados e de outros países. Entre os objetivos da iniciativa estão o fortalecimento da infraestrutura de pesquisa na Amazônia e a tentativa de fixar pesquisadores na região.
Science Arena – Quais são as principais demandas de ciência e tecnologia da Amazônia?
Marcel Botelho – Estamos diante de um paradigma que precisa ser quebrado. Por muito tempo, a Amazônia foi vista por prismas diferentes e bastante equivocados. Ela já foi chamada de “pulmão do mundo” e sabemos que esse “pulmão” é responsabilidade dos oceanos, não da Amazônia. Sabemos, por sua vez, que a região é indispensável para a estabilidade climática.
No governo anterior [de Jair Bolsonaro], tivemos uma grande escassez de recursos financeiros para ciência e tecnologia em todo o país, especialmente na Amazônia. Justamente em um período de pandemia de covid-19, durante o qual tanto dependemos de investimentos.
Se continuarmos olhando por prismas equivocadas do passado, acabaremos vendo a Amazônia como uma reserva ambiental ou uma região rica que precisa ser explorada à exaustão.
Se isso seguir, sacrificaremos mais de 35 milhões de pessoas, incluindo os países que fazem fronteira com o Brasil e que são também parte da Amazônia sul-americana, como Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Guiana, Suriname e Guiana Francesa.
Qual é a importância das fundações de amparo à pesquisa, como a Fapespa, e o qual o papel delas na Amazônia?
As fundações têm um papel vital, porque são agências de fomento que atuam de maneira muito próxima dos pesquisadores, isto é, a “ponta final” que executa projetos em laboratórios ou trabalhos de campo.
As agências estaduais de apoio têm condições de dimensionar, avaliar e conduzir o processo de fomento de maneira localizada e customizada para a necessidade daquele estado. O Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) tem um papel fundamental de gerenciar e coordenar nacionalmente este trabalho, atuando de forma independente e autônoma, entendendo os diferentes ecossistemas de cada estado ou região.
Em um país com as dimensões territoriais do Brasil e as assimetrias existentes (de nível econômico, educacional ou de desenvolvimento), o conhecimento local é indispensável. A Amazônia é uma região que depende muito de ciência e tecnologia. Reconhecemos que precisamos de ajuda nacional e internacional.
Contudo, é necessário que os povos da Amazônia sejam protagonistas, ou seja, participem ativamente das ações de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), e não sejam meros “consumidores” ou observadores passivos da ciência produzida na região.
Quais são os impactos da exploração da Amazônia em detrimento do investimento em inovação local?
A aposta na exploração irracional e desenfreada dos recursos naturais com o intuito de gerar riquezas (com base no extrativismo de reservas naturais) tem resultado na desertificação e no desflorestamento em toda a Amazônia nos últimos tempos.
Corre-se o risco de extinção da floresta a partir da justificativa da busca por desenvolvimento. Não podemos permitir que isso ocorra na Amazônia.
Precisamos de um modelo novo e, desse propósito, surgiu a Iniciativa Amazônia+10.
Do que se trata a Iniciativa Amazônia+10?
A iniciativa tem este nome, pois começou com os nove estados da Amazônia brasileira e, depois, incorporamos São Paulo, por ter uma instituição [a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP] capaz de aportar muitos recursos ao projeto.
Mesmo com a participação de São Paulo, mantivemos a proposta de valorizar o conhecimento local, as instituições presentes na Amazônia e o protagonismo da região na tomada de decisões.
Atualmente, a Iniciativa Amazônia+10 soma 39 projetos em andamento – 20 deles com participação da Fapespa, do Pará. Estamos com um edital, em vias de lançamento, da seleção final, que é o de Expedições Científicas. Isso motivado pela pergunta: será que a gente realmente conhece a Amazônia? Garanto que não.
As pesquisas feitas na Amazônia, quando não são por satélites, são realizadas nas margens dos rios e das estradas. Pouco se adentra na realidade da Amazônia. Existem muitos vazios científicos na região como todo.
Estamos falando de uma região que ocupa mais de 60% do território nacional, e que recebe muito menos recursos proporcionalmente do que, por exemplo, a Mata Atlântica, que ocupa uma faixa estreita do território nacional.
Houve grande procura a partir da chamada de propostas de Expedições Científicas?
O número de projetos que recebemos foi absurdamente maior do que estávamos imaginando, por causa da complexidade do tema. Ao todo, foram inscritos 199 projetos. Para atender a essa demanda, precisaríamos do aporte de R$ 500 milhões.
Como é possível prover mais apoio financeiro para a pesquisa na Amazônia?
Sabendo onde alocar recursos. Indo para a esfera política, na qual o debate é livre, vemos que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação [MCTI] aprovou a construção e o investimento de R$ 600 milhões no primeiro laboratório de biossegurança de nível 4 (NB4) da América Latina. Batizado de Orion, o laboratório terá sede no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais [CNPEM], em Campinas, São Paulo, e será voltado à pesquisa com patógenos das classes 3 e 4 [isto é, capazes de causar doenças graves e com alto grau de transmissibilidade].
A instituição reconhecida mundialmente pelo trabalho com vírus de florestas tropicais é o Instituto Evandro Chagas, no Pará. Ao invés de instalar o laboratório aqui em Belém, o MCTI decidiu construí-lo em Campinas. Nada contra o CNPEM receber este aporte, mas a expertise está em Belém, no Pará. Quem está com a caneta na mão nem sempre toma a melhor decisão.
Quais são os outros diferenciais da pesquisa feita no Pará?
Temos no nosso estado os planos de economia e de recuperação de vegetação nativa bem consolidados. Desde 2019, o Pará vem saindo do discurso para a prática. Para isso ir mais longe, precisamos de investimento sério, constante e robusto. Somente assim vamos fortalecer as estruturas de ciência e tecnologia.
Fico tremendamente preocupado quando vejo a criação de um instituto de pesquisa sobre a Amazônia em São Paulo, como o Centro de Estudos da Amazônia Sustentável [Ceas] da Universidade de São Paulo [USP].
Por que isso o preocupa?
Temos quase 200 instituições de pesquisa na Amazônia, todas precisando de investimento, de apoio para infraestrutura. Nos últimos anos, sofremos com a diáspora científica [perda de cientistas para instituições de outros estados ou países] e o sucateamento.
Nossos pesquisadores são capturados por instituições com maior poder aquisitivo e melhores condições de trabalho. Estão levando pessoas que pesquisariam a Amazônia de dentro da Amazônia.
Não podemos mais aceitar apenas uma discussão sobre a Amazônia. Queremos promover uma discussão na Amazônia. Queremos ter protagonismo [na pesquisa], com inclusão do conhecimento ancestral e de realidades locais.
Quais os desafios disso?
No Brasil, os estados da Amazônia são os que menos investem proporcionalmente em ciência e tecnologia. Precisamos tomar uma decisão estratégica, de realmente preservar a Amazônia com o desenvolvimento social que a população merece.
Não podemos receber a mesma proporcionalidade de recurso que outras regiões recebem. Temos que, pelo menos, colocar o dobro do valor que a Amazônia contribui hoje com o Produto Interno Bruto [PIB] nacional, para ficar dentro de um valor elegível.
Por sua vez, enquanto a Amazônia, como um todo, contribui com cerca de 6,5% do PIB nacional, ela recebe apenas 3% do investimento nacional de ciência e tecnologia. Minha sugestão é que recebamos o dobro de nossa contribuição, ou seja, 13% do recurso de Ciência, Tecnologia e Inovação [CTI] do país.
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