
Autismo, paracetamol e incerteza científica: o que mostram as evidências mais recentes
Declaração de Donald Trump sobre suposta relação entre paracetamol e autismo reacende debate sobre incertezas científicas e desafios no diagnóstico do transtorno do espectro autista

Em 22 de setembro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez um anúncio condenando o uso de paracetamol em gestantes por conta da suposta associação do remédio com autismo.
O comentário gerou discussões, com grande parte da comunidade científica apontando a falta de evidências que ratificam a fala do presidente norte-americano. Por exemplo, a “Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma nota informando que “não há evidências científicas conclusivas que confirmem uma possível ligação entre autismo e o uso de paracetamol […] durante a gravidez”.
De forma parecida, a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO, na sigla em inglês) informou que “as evidências não apoiam a associação causal” entre consumo de paracetamol durante a gravidez e risco para o autismo. No Brasil, o Ministério da Saúde afirmou que “não há nenhuma evidência científica que afirme a relação entre o medicamento e o transtorno”.
Mesmo com posicionamentos contrários, a fala do presidente dos Estados Unidos reacendeu a discussão sobre as incertezas que envolvem o autismo. Mais do que isso, o discurso de Trump trouxe à tona a discussão sobre como lidar com incertezas científicas.
O que a ciência sabe (e ainda não sabe) sobre o autismo
Diagnosticar o autismo não é fácil por conta de questões em aberto sobre a causa da condição. Atualmente, sabe-se que a genética explica grande parte do desenvolvimento do distúrbio. Sven Sandin, estatístico e pesquisador sênior do Instituto Karolinska, na Suécia, é autor de diferentes estudos sobre o tema.
“Podemos dizer que de 80 a 85% dos riscos [para o autismo] vêm de genes que nós herdamos diretamente de nossos pais.”
— Sven Sandin, Instituto Karolinska
O que se sabe sobre as causas do autismo
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Genética
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explica de 80% a 85% dos casos, segundo o Instituto Karolinska.
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Fatores ambientais
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ainda em investigação, incluem infecções, exposições químicas e medicamentos.
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Diagnóstico
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depende de avaliações clínicas e comportamentais, com desafios de padronização
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Prevalência
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varia entre 0,9% e 1,5% da população mundial.
Mas cientistas ainda encontram dificuldades em identificar quais genes são esses, o que leva a diagnósticos baseados em análises clínicas, que podem ser mais suscetíveis a erros ou incertezas.
Mesmo com esse cenário, pesquisadores já investigam a prevalência da condição. Cristiane Silvestre de Paula, professora associada do programa de pós-graduação em ciência do desenvolvimento humano da Universidade Mackenzie e representante da América Latina no Global Senior Leader do INSAR (Sociedade Internacional para Pesquisa do Autismo, na sigla em inglês), é referência no tema.
Segundo de Paula, a prevalência a nível mundial do autismo é entre 0,9% e 1,5% da população total. O dado é baseado em diferentes artigos veiculados em periódicos científicos, como uma revisão sistemática publicada em 2022 que identificou uma prevalência global de 1%, mesmo com variação entre regiões.
Essas diferenças regionais representam outro ponto em aberto sobre o autismo – pelo menos em relação à genética da condição.
Graccielle Asevedo, médica psiquiatra e vice-coordenadora do TEAMM, que é um ambulatório de transtorno do espectro autista vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que muitos dos bancos de dados genéticos contam com poucas informações de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Essa escassez de dados é um gargalo para entender mais detalhes dos genes associados ao distúrbio.
Paracetamol e o risco de autismo: o que dizem os estudos
Mesmo que a hereditariedade seja o principal fundamento para o autismo, outros fatores também entram no cálculo. O uso do paracetamol durante a gravidez começou a ser investigado como um desses possíveis outros fatores.
Por exemplo, uma pesquisa de 2013 que considerou dados de 8 países encontrou uma correlação entre indicadores da administração do medicamento no período pré-natal e perinatal e o autismo. Falas como a do presidente Trump se valem desse tipo de estudo, mas esse achado não é robusto.
Estudos como esse levantam questões que precisam ser melhor investigadas, mas eles não provam uma relação de causalidade.
Uma das limitações comuns a esse tipo de pesquisa é a falta de controle para outros fatores. Ou seja, não é possível ter certeza que uma variável causa determinado desfecho já que os participantes normalmente estão submetidos a outros fatores — comorbidades, por exemplo — que não são controlados de forma ideal.
A exposição à variável investigada também pode ser imprecisa. No estudo de 2013, já mencionado, os autores pontuaram que a circuncisão perinatal foi um indicador da administração de paracetamol em bebês recém-nascidos visto que o medicamento é recomendado nessas situações. Mas esse indicador é uma suposição, o que diminui a confiabilidade sobre a exposição ao remédio.
Estudos clínicos randomizados “permitem isolar variáveis e reduzir vieses, ou seja, oferecem um nível de controle muito maior”, afirma Denise Garrett médica epidemiologista e vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas (EUA)
No entanto, a realização de estudos clínicos randomizados para observar se o uso de paracetamol entre grávidas leva ao desenvolvimento de autismo não é factível, afirma Sandin, do Instituto Karolinska. Até porque gestantes são normalmente excluídas dessas pesquisas, algo que gera uma lacuna de conhecimento, explica Garrett.
Em casos assim, o importante é desenvolver mais estudos, de preferência que controlem outros fatores para averiguar se o paracetamol realmente aumentaria o risco da condição.
Esse foi o caso de uma pesquisa publicada em 2024 que investigou o tema a partir de irmãos para controlar fatores genéticos e familiares. Nesse caso, não foi visto uma associação entre o medicamento e o autismo.
Como lidar com incertezas científicas
O estudo de 2024 trouxe evidências importantes e robustas sobre o tema, mas ainda tem limitações. Uma delas é que não houve uma avaliação muito bem acurada sobre a exposição ao paracetamol durante a gravidez.
A pesquisa também foi restrita a dados suecos, o que é outra limitação, completa Sandin.
Dessa forma, existem visões distintas sobre se a associação entre paracetamol e autismo deveria continuar sendo investigada.
De Paula acredita que as evidências existentes já são suficientes para dizer que a correlação não existe.
Enquanto isso, Asevedo e Sandin concordam que a associação não aparenta ser real ao considerar dados científicos atuais. Mas se recursos para pesquisa fossem muito altos ou mesmo ilimitados, o tema poderia continuar sendo objeto de investigação, apontam os dois pesquisadores.
No entanto, outras áreas, como os genes associados à condição, “são mais relevantes”, complementa Asevedo.
Incertezas científicas como essa chamam a atenção de Kevin Elliott, professor da Universidade Estadual de Michigan, nos EUA, e especialista em filosofia da ciência e ética.
Elliott argumenta que a população deveria ter uma perspectiva ampla sobre riscos associados a medicamentos para, então, decidirem se estão dispostas a consumir tais remédios.
Para isso, é necessário ter um conhecimento vasto sobre drogas e seus efeitos, além de comunicá-lo de maneira clara à população.
Segundo Elliott, não foi isso que aconteceu no caso de Trump. “O presidente [Trump] fez parecer que as evidências eram totalmente convincentes, enquanto provavelmente a maioria das pessoas concluiria, com base nas evidências disponíveis, que ainda vale a pena tomar Tylenol em muitos casos”, diz.
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