
The Lancet: “Autores estão se autocensurando”
Em editoriais, Grupo BMJ e The Lancet afirmam ser imperativo que a comunidade científica não se intimide e enfrente “políticas nocivas” de Donald Trump

Após retirar os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Acordo Climático de Paris, o presidente norte-americano Donald Trump agora vem impondo uma série de medidas restritivas à atividade científica e à autonomia de agências regulatórias e instituições vinculadas ao governo federal, entre elas os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), principal agência de apoio à pesquisa biomédica daquele país.
Poucos dias após assumir a presidência, Trump determinou a interrupção das sessões que analisam os pedidos de subsídios, cancelou workshops e reuniões, suspendeu viagens e proibiu os pesquisadores de publicar relatórios e comunicados, e fazer contato com a imprensa, acrescentando que futuras apresentações da equipe dos NIH em reuniões ou conferências deveriam ser previamente aprovadas por um indicado presidencial.
Mesmo a publicação de artigos preprints (ainda não avaliados por especialistas da mesma área) em repositórios online foi suspensa.
“É difícil entender o perigo que os preprints representam para os Estados Unidos ou como uma ordem de silêncio parcial sobre os cientistas dos NIH coloca a saúde e o bem-estar das pessoas e do planeta em primeiro lugar. Na verdade, como é que todas essas medidas colocam ‘a América em primeiro lugar’?”, questionou Kamran Abbasi, editor-chefe do Grupo BMJ (British Medical Journal), responsável pela publicação de várias revistas científicas de renome na área médica, em editorial publicado em 30 de janeiro.
Um dia depois, veio a notícia de que pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) teriam sido oficialmente instruídos a não publicar relatórios ou estudos científicos contendo termos considerados “proibidos” ou problemáticos pela administração Trump, como “gênero”, “LGBT”, “transgênero”, “diversidade” e “inclusão”.
E-mail enviado aos pesquisadores em 31 de janeiro por Sam Posner, diretor do escritório de ciência do CDC, trazia até um texto pronto para que eles justificassem os pedidos de retratação de artigos contendo tais termos já submetidos para publicação em revistas científicas.
Vários bancos de dados e páginas com orientações sobre vacinas, vírus e doenças sexualmente transmissíveis foram retirados do ar para “revisão”, a fim de garantir que não estivessem em desacordo com as diretrizes do governo federal dos EUA.
Em um novo editorial publicado em 4 de fevereiro, Kamran Abbasi e Jocalyn Clark, editora internacional do Grupo BMJ, classificam as medidas de Trump como “censura” e conclamaram pesquisadores e publicações científicas a não “se curvarem” a ela. “É absurdo que a produção científica seja tratada com tamanho desrespeito”, escreveram.
“Isso equivale à censura de cientistas, violação dos direitos à liberdade de expressão, desumanização de indivíduos LGBT e indiferença para com os contribuintes norte-americanos e seres humanos em todo o mundo que apoiam a pesquisa do CDC e têm o direito de esperar que suas descobertas sejam compartilhadas”, escreveram Abbasi e Clark.
Na revista científica The Lancet, o impacto já foi sentido. “Revisores estão recusando convites e autores estão se autocensurando”, escreveram em editorial publicado em 8 de fevereiro.
“A capacidade dos pesquisadores de trabalhar foi severamente limitada ou completamente paralisada. A liberdade de expressão está sendo restringida”, diz o texto, acrescentando que é imperativo que as instituições de saúde não se deixem intimidar e confrontem as políticas nocivas de Trump.
“As instituições de saúde podem hesitar em criticar publicamente a nova administração, mas essa timidez é um erro. As ações de Trump devem ser denunciadas pelos danos que estão causando.”
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