
Evento discute papel da ciência para enfrentar desafios globais urgentes
IA, crise climática e desigualdades regionais pautam primeiro dia da 17ª Conferência Geral da TWAS, no Rio de Janeiro

A ciência e a forma de produzir conhecimento estão mudando — e países de baixa e média renda podem estar diante da oportunidade de liderar essa transformação. Para isso, é preciso enfrentar desigualdades internas, disputar espaço com grandes corporações em áreas como inteligência artificial (IA) e garantir financiamento público de longo prazo.
Esses pontos marcaram o primeiro painel da 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências para o Avanço da Ciência nos Países em Desenvolvimento (TWAS), sediada na Itália e ligada à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O encontro, que começou no dia 29 e segue até 2 de outubro no Rio de Janeiro*, é organizado em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e reúne autoridades e mais de 300 cientistas do mundo todo, a fim de discutir cooperação científica e soluções para desafios atuais, como IA e mudanças climáticas.
“Precisamos da mobilização de massa crítica em todos os lugares para lidar com os desafios contemporâneos”, disse Lidia Brito, diretora-geral assistente para Ciências Naturais da Unesco, lembrando que, para formar uma massa crítica em áreas estratégicas, “é preciso treinar 10 mil pessoas para que mil façam a diferença.”
O físico Marcelo Knobel, diretor-executivo da TWAS, apresentou um levantamento, feito por Carlos Henrique de Brito Cruz, vice-presidente sênior da Elsevier Research Networks, no Reino Unido, a partir da base Scopus (1970–2024).
Os dados mostram que, hoje, 60% dos papers publicados em diferentes áreas do conhecimento vêm de países de baixa e média renda.
O número de autores nesses países cresce 10% ao ano — o dobro da taxa registrada nos mais ricos. Mesmo sem considerar a China, o conjunto das 28 maiores nações de baixa e média renda cresce mais rápido do que União Europeia e Reino Unido juntos.
Demandas sociais e experiências locais
O crescimento não é apenas em volume. Há mais citações e maior protagonismo em pesquisas ligadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS).
No caso do ODS 2 (erradicação da fome), a participação de países de baixa e média renda é ainda mais expressiva.
Para Knobel, esse avanço é fruto de décadas de investimento em capacitação, especialmente na pós-graduação. Esse esforço, diz ele, sustenta pesquisas mais conectadas às demandas sociais e às experiências locais.
“Trabalhar com países de baixa e média renda deixou de ser uma opção e se tornou uma necessidade para o avanço mais rápido e melhor do conhecimento”, afirmou Knobel, da TWAS.
“Mais ideias vindas desses países significam mais conhecimento ligado às experiências locais e maior protagonismo na definição de agendas.”

Realidades desiguais
Apesar dos números promissores, os painelistas alertaram que ainda há muitos desafios que persistem, como a desigualdade de gênero na ciência.
Além disso, destacaram que o que se convencionou chamar de “Sul global” pode esconder uma realidade desigual: o avanço da ciência está concentrado em países de renda média-alta (como a China), que apostaram em estratégias de longo prazo – enquanto muitos países de baixa renda (como a Angola) têm universidades frágeis e pouca formação científica.
A situação se agrava com a emergência de tecnologias como IA, computação quântica e semicondutores, em meio a um cenário geopolítico de forte competição, protecionismo e barreiras crescentes à cooperação e à transferência de conhecimento.
Segundo Luis Manuel Rebelo Fernandes, secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil (MCTI), essa assimetria afeta sobretudo países de menor renda, que estariam entre os menos preparados para adotar inovações como IA e hidrogênio verde — e correm o risco de ficar de fora das oportunidades de uma economia de baixo carbono.
Essa divisão, ressaltou Fernandes, deixaria regiões da América Latina, Caribe e África Subsaariana particularmente vulneráveis.
No caso específico da IA, o risco é que a falta de infraestrutura de dados e de capacidade de computação amplie a divisão entre países ricos e pobres.
Há ainda impactos ambientais: a tecnologia exige grandes volumes de água e energia, em competição direta com necessidades básicas de regiões vulneráveis.
“Entre as tendências que devem modular a ciência no Sul global estão a transição para soluções integradas — que conectem água, energia, alimentação e clima —, o salto digital com inteligência artificial e as transições verde e energética”, avaliou Akissa Bahri, ex-ministra da Agricultura, Recursos Hídricos e Pesca da Tunísia.
Novo contrato da ciência
A cooperação internacional apareceu como eixo inevitável para sustentar essas soluções, seja em modelos horizontais entre países do Sul, seja em arranjos que incluam o Norte.
Para Lidia Brito, seria também uma forma de se adaptar ao novo ‘contrato’ da ciência.
“Antes, os governos financiavam os cientistas para que buscassem novos conhecimentos em benefício da sociedade. Hoje, quem investe mais são as empresas, e isso significa que também são elas que definem onde e para quem a pesquisa é feita, quem pode acessá-la e quem se beneficia dela”, afirmou a representante da Unesco.
Nesse contexto, o acesso aberto à produção científica ganha peso nas discussões.
Além das barreiras linguísticas, as altas taxas de publicação cobradas por editoras científicas foram apontadas como um entrave que ameaça “matar a ciência” em muitos países do Sul.
“Não podemos generalizar, pois existem situações diferentes nos países de cada um desses continentes e regiões”, afirmou Fernandes, do MCTI.
“Mas o entendimento do Brasil é que cooperação em ciência, tecnologia e inovação é chave para o desenvolvimento do Sul global, de modo a fortalecer a soberania e a autonomia tecnológica e reduzir as assimetrias globais.”
*A equipe do Science Arena viajou a convite da TWAS.
*
É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).