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IA pode ampliar desigualdades no Sul global, alertam cientistas

Na 17ª Conferência Geral da TWAS, especialistas apontam riscos ligados à falta de infraestrutura, dependência externa e concentração tecnológica

O palco principal da 17ª Conferência Geral da TWAS, no Rio de Janeiro, expõe um telão com informações sobre os riscos do uso de inteligência artificial sem controle ético O debate sobre os limites e as oportunidades da inteligência artificial marcou o segundo dia da 17ª Conferência Geral da TWAS, no Rio de Janeiro | Imagem: Mário Marques / Divulgação Academia Brasileira de Ciências

A inteligência artificial (IA) avança em ritmo acelerado, mas governos ainda buscam formas de regular seus impactos. Em países de baixa e média renda — concentrados no chamado Sul global —, o desafio é ainda maior: infraestrutura escassa e dependência tecnológica externa ampliam os riscos de exclusão e desigualdade.

O tema marcou parte do segundo dia de debates da 17ª Conferência Geral da Academia Mundial de Ciências para o Avanço da Ciência nos Países em Desenvolvimento (TWAS), realizada de 29 de setembro a 2 de outubro no Rio de Janeiro. 

A TWAS é um órgão sediado na Itália e vinculado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

O encontro, organizado em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC), reúne autoridades e mais de 300 cientistas do mundo todo, a fim de discutir cooperação científica e soluções para desafios atuais, como limites e oportunidades da IA e crise climática.

“A tecnologia está evoluindo muito rápido, por isso precisamos manter o controle dessas tecnologias”, afirmou o cientista da computação Virgílio Augusto Fernandes Almeida, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do escritório regional da América Latina e Caribe da TWAS (TWAS-LACREP).

Almeida destacou que a IA, como sistema algorítmico complexo, já molda a economia, a política e o poder geopolítico global. O principal desafio de governança seria o “hiato de ritmo” — a velocidade da inovação supera a capacidade dos governos de criar políticas públicas adequadas.

“Parte do problema é que, no nível individual, os impactos parecem sutis e dispersos”, comentou Almeida. “Um conteúdo político impulsionado por algoritmos pode não causar grande dano a uma pessoa isolada. Mas, em escala macro, as consequências dessas interações locais se tornam visíveis.”

O engenheiro de IA sul-africano Tshilidzi Marwala, reitor da Universidade das Nações Unidas (UNU), discursa durante a 17ª Conferência Geral da TWAS, no Rio de Janeiro
Para Tshilidzi Marwala, reitor da Universidade das Nações Unidas (UNU), ferramentas de inteligência artificial precisam ser transparentes e seguras | Imagem: Mário Marques / Divulgação Academia Brasileira de Ciências

Acesso à infraestrutura

De acordo com o pesquisador, no Sul global, embora governos controlem seus territórios físicos, o domínio sobre os territórios digitais está concentrado em poucas grandes plataformas – que muitas vezes não respondem a decisões locais. 

Almeida destacou ainda que esse monopólio aprofunda a desigualdade digital.

Na mesma linha, o engenheiro de IA sul-africano Tshilidzi Marwala, reitor da Universidade das Nações Unidas (UNU), destacou que a concentração também ocorre no campo da infraestrutura.

“O acesso à computação de alto desempenho é um grande problema no Sul global”, disse Tshilidzi Marwala.

“Quando trabalhei na região, era preciso recorrer a serviços como o da Amazon Web Services para realizar cálculos complexos, e isso custa muito caro. Precisamos criar plataformas que permitam acesso a esse tipo de infraestrutura.”

O problema não se resume à infraestrutura. A exclusão também aparece na forma como a tecnologia é concebida. Marwala lembrou que a maior parte dos grandes modelos de linguagem (LLM) é treinada em inglês, deixando de fora línguas pouco representadas, o que gera vieses e invisibiliza culturas locais.

O pesquisador brasileiro Virgílio Almeida, da UFMG, discursa durante a 17ª Conferência Geral da TWAS, no Rio de Janeiro
Virgílio Almeida, da UFMG: “precisamos manter o controle de novas tecnologias, entre elas a IA” | Imagem: Mário Marques / Divulgação Academia Brasileira de Ciências

Ferramenta nova, dilemas antigos

O físico Sunil Mukhi, professor do Indian Institute of Science Education and Research (IISER) em Pune, na Índia, chamou atenção para a dimensão estrutural desses desafios.

Para Mukhi, a IA não pode ser vista como solução automática para desigualdades históricas, porque tende a reproduzir padrões sociais já existentes.

“Nutrição, saúde, educação e segurança universais ainda não são realidade. E isso é preocupante, pois a IA é uma tecnologia nova, mas não fizemos muito com as antigas. Ela é só uma ferramenta, não um agente autônomo”, afirmou.

Na visão dos painelistas, o debate sobre ética ganha peso na era da IA. Se, como lembrou Mukhi, a tecnologia reflete valores de quem a projeta, torna-se central definir quais princípios devem orientar seu desenvolvimento.

Ética da IA

Marwala, da UNU, defendeu que os direitos humanos funcionem como base comum para avaliar dados, algoritmos e aplicações. 

Já Almeida acrescentou que essa construção precisa ser multidisciplinar, reunindo cientistas da computação, juristas, filósofos e especialistas em ciências sociais e humanidades para antecipar riscos e reduzir vieses.

“Acho que é exatamente nesse ponto que a filosofia se torna importante, pois a ética nasce da forma como queremos que o mundo seja, e não há consenso sobre isso”, observou Mukhi, da Índia. “Uma discussão filosófica nesse sentido é fundamental”, resumiu.

O pesquisador indiano Sunil Mukhi discursa durante a 17ª Conferência Geral da TWAS, no Rio de Janeiro
O indiano Sunil Mukhi, do Indian Institute of Science Education and Research, durante a 17ª Conferência Geral da TWAS, no Rio de Janeiro: “IA não é solução automática para desigualdades históricas” | Imagem: Mário Marques / Divulgação Academia Brasileira de Ciências

Nesse contexto, surgiu a proposta de criar um código de conduta global para a IA, possivelmente sob a liderança da Organização das Nações Unidas (ONU). 

A ideia reforça o peso da cooperação internacional — sem arranjos comuns, alertaram os cientistas, países de baixa e média renda continuarão à margem da definição das regras que irão moldar o futuro tecnológico.

Conflitos de valores

O brasileiro Virgílio Almeida reforçou a necessidade de desenvolver uma “IA responsável”, guiada por quatro princípios centrais: 

Esses eixos, disse o professor da UFMG, precisam nortear políticas públicas e o desenvolvimento tecnológico em benefício da sociedade.

No entanto, como lembrou Marwala, mesmo valores considerados consensuais podem entrar em conflito, e regular a IA exige lidar com essas tensões de forma explícita.

“A IA precisa ser transparente e segura”, ressaltou Marwala. “Mas a transparência vem às custas da segurança: quanto mais transparente, menos segura. Decidir esse equilíbrio é, no fim, uma questão de valores”, afirmou. 

“Outro valor essencial é a verdade. A IA deve ser verdadeira, mas em laboratórios e salas de aula só se fala em acurácia. E acurácia não é a mesma coisa que verdade”, disse Marwala.

Para os painelistas, a governança da IA não depende apenas de especialistas técnicos, mas de ampliar a alfabetização digital e algorítmica, especialmente entre formuladores de políticas e tomadores de decisão. 

Isso significa que não se trata apenas de formar programadores, mas de garantir que governos entendam os impactos sociais, econômicos e éticos da tecnologia que estão tentando regular. 

Esse esforço também passa pela criação de incentivos para o uso responsável da IA, em contraste com a lógica predominante de maximização de lucros das grandes plataformas.

O debate se conecta a uma agenda mais ampla. Para Almeida, a IA responsável não é apenas uma questão de regulação, mas um instrumento estratégico para ciência, inovação e desenvolvimento inclusivo no Sul global. 

*A equipe do Science Arena viajou a convite da TWAS.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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