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12.11.2025 Saúde Pública

Mulheres negras e indígenas morrem mais por câncer de colo de útero, mostra levantamento

Pesquisadores de São Paulo, Minas e Bahia mapeiam dados e mostram o reflexo do racismo no sistema de saúde

A imagem mostra duas mulheres indígenas em primeiro plano, participando de um evento ao ar livre sob luz intensa do dia. Ambas usam cocares de penas verdes na cabeça e pinturas corporais tradicionais no rosto. A mulher à direita segura um maracá (instrumento de percussão) erguido com firmeza, em um gesto de expressão e força. Ela está com o rosto parcialmente pintado de vermelho e preto, adornada com colares, pulseiras de miçangas coloridas, brincos e enfeites de penas no pescoço e no busto. Em duas décadas, enquanto a mortalidade por câncer de colo de útero caiu entre mulheres brancas, ela permaneceu quase estável entre negras e aumentou expressivamente entre indígenas | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Em 20 anos, houve queda na taxa de mortalidade por câncer de colo de útero, doença que ocupa o terceiro lugar nas causas de óbito feminino. Entre as mulheres negras brasileiras, porém, a queda foi muito menor, permanecendo em valores próximos da estabilidade durante o período. Para as indígenas, ao contrário, a tendência foi de crescimento, subindo de 4 óbitos para cada 100 mil mulheres em 2002 para quase 13 por 100 mil em 2021.

Os dados são de uma pesquisa que reuniu cientistas de São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Esse foi o primeiro estudo abordando a relação entre raça/cor e mortalidade por câncer de colo de útero, doença cujo rastreio de lesões iniciais evita o diagnóstico em estágio avançado e desfecho desfavorável. O objetivo foi analisar por séries temporais os 133 mil óbitos entre 2002 e 2021, a partir de dados do IBGE e do Sistema de Informação sobre Mortalidade. 

Em 2002 a cada 100 mil mulheres, a diferença entre a mortalidade de brancas e negras era de 0,08. Em 2021 esse número chegou a 1. 

Segundo os autores, fica claro que, para a elaboração de políticas de saúde da mulher, devem ser consideradas as diferenças raciais na implementação de estratégias e metas.

“As diferenças raciais na mortalidade por câncer de colo do útero encontradas podem ser explicadas pela distribuição desigual de recursos sociais. Embora esta situação seja decorrente dos níveis de pobreza, ela é catalisada pelas desigualdades raciais. Como a citologia oncótica, o diagnóstico e tratamento oportunos são as principais intervenções para o controle deste agravo, a dificuldade de acesso aos serviços explica os diferentes coeficientes de mortalidade”, declaram os autores, pertencentes aos quadros do Instituto Pólis, Universidade Estadual de Feira de Santana, Faculdade de Medicina da USP e Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.

Dados de boa qualidade

Dados disponíveis e de boa qualidade são fundamentais para revelar os efeitos da desigualdade racial, mas um dos grandes desafios está na incompletude do campo raça/cor nos principais sistemas de informação em saúde. De acordo com o boletim especial “Saúde da População Negra”, do Ministério da Saúde, o percentual de incompletude vem diminuindo de modo consistente desde 2010.

O boletim destaca que, no contexto da pandemia de Covid-19, a partir de agosto de 2020, esse cenário começou a ser atenuado, com a mudança da categoria do campo raça/cor de “essencial” para “obrigatório” na ficha de notificação do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe). Vale lembrar também que a obrigatoriedade do preenchimento do campo raça/cor em todos os sistemas de informação utilizados pelo SUS está prevista desde 2017. 

“Muitas são as barreiras para o preenchimento desse campo, as quais perpassam pelo não reconhecimento da importância do dado, pelas dimensões do racismo interpessoal e institucional e até mesmo pelo constrangimento do profissional de saúde em perguntar ‘como você se autodeclara?’. A sensibilização das equipes de saúde que realizam o diagnóstico e o preenchimento dos formulários é tão imprescindível para a qualificação da informação quanto para o desenho e o financiamento de políticas intersetoriais efetivas na organização de uma rede de atenção integral à saúde”, destacam os autores na introdução do documento.

Racismo estrutural

No Brasil, apesar de os negros representarem mais da metade da população, o campo da saúde pública só começou a destacá-los nos anos 2000. A criação da Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Saúde para a Igualdade Racial (SEPPIR) se deu em 2003 e logo depois veio a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).

“As políticas sociais e econômica após a abolição excluíram deliberadamente os negros da produção e do acesso aos bens e serviços. Essa dinâmica se expressa desde então nos inúmeros aspectos da injustiça racial, com reflexos desiguais e injustos na forma como as pessoas adoecem. A falsa ideia da ‘democracia racial’ ocultou a exclusão racial. A incorporação do quesito raça-cor nos sistemas de informações da saúde desvelará uma realidade até então desconhecida”, diz Olinda Luiz, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e uma das autoras do artigo que apontou a disparidade na queda de taxa de mortalidade por câncer de colo de útero. 

Mulheres negras têm piores indicadores de acesso ao pré-natal e maiores taxas de mortalidade durante a gestação, parto e puerpério, apontou estudo feito pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.

Essa mesma disparidade é provavelmente replicada para diversas outras questões de saúde. “Sem dúvida, quase todos os indicadores de saúde apresentam diferenças raciais marcantes, com piores números para negros e ainda piores para os indígenas”, alerta Olinda. Um exemplo de desigualdade racial destacado pela professora é a mortalidade materna, “que poderia ser evitada em mais de 90% dos casos”. Mulheres negras têm piores indicadores de acesso ao pré-natal e maiores taxas de mortalidade durante a gestação, parto e puerpério, apontou estudo feito pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde com dados analisados entre 2014 e 2020.

Ainda que o foco esteja nas políticas públicas de saúde, os estudiosos concordam que a questão não pode ser vista separadamente do contexto social. “As intervenções não devem se restringir apenas ao campo da saúde, mas políticas de reparação e inclusão são fundamentais. Cotas raciais na educação e medidas econômicas, entre outras ações, tendem a ser mais efetivas do que ações setoriais isoladas”, conclui Olinda Luiz.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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