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01.08.2025 Biotecnologia

Pesquisadores criam camundongos férteis a partir do DNA de dois machos

Estudo chinês reprograma material genético dos animais, apontando caminhos e dilemas para o futuro da reprodução assistida

Camundongo albino sendo segurado por mãos enluvadas, em ambiente de pesquisa científica Camundongo de laboratório, como os utilizados no estudo chinês que gerou, pela primeira vez, filhotes férteis a partir do DNA de dois machos | Imagem: Pixabay

Pela primeira vez, um grupo de cientistas chineses conseguiu criar camundongos saudáveis e férteis a partir do material genético de dois machos, um avanço inédito que abre caminho para possibilidades até então inimagináveis, como a de casais do mesmo sexo terem filhos biológicos. No entanto, especialistas alertam que ainda há um longo caminho a percorrer antes que isso possa ser testado em seres humanos.

Sob coordenação de Yanchang Wei, do Centro de Medicina Reprodutiva do Hospital Ren Ji da Faculdade de Medicina da Universidade Jiao Tong de Xangai, na China, os pesquisadores introduziram dois espermatozoides em um óvulo previamente esvaziado de seu núcleo. Em seguida, utilizaram técnicas de edição genética para reprogramar sete regiões do DNA dos espermatozoides, etapa essencial para permitir o desenvolvimento do embrião.

Dos 259 embriões transferidos para fêmeas, somente dois, ambos machos, sobreviveram e chegaram à idade adulta, uma taxa de sucesso bastante baixa. Ainda assim, conseguiram gerar filhotes ao acasalar com fêmeas, e os descendentes apresentaram tamanho, peso e aparência normais. Um feito, até então, inédito.

A barreira do imprinting

Criar camundongos de dois pais tem se mostrado muito mais difícil do que de duas mães devido a um fenômeno chamado imprinting, relacionado ao fato de que a maioria dos animais possui dois conjuntos de cromossomos, um herdado da mãe e outro do pai.

Durante a formação dos óvulos e espermatozoides, são adicionadas marcas químicas aos cromossomos que programam alguns genes para ficarem ativos e outros inativos. Essas modificações são chamadas de “epigenéticas” porque não alteram a sequência do DNA, mas as marcas podem ser transmitidas quando as células se dividem, fazendo com que seus efeitos durem a vida toda.

Ocorre que a programação epigenética nas mães é diferente da dos pais: alguns genes “ligados” no espermatozoide estão “desligados” no óvulo, e vice-versa. Dessa forma, se um óvulo tiver dois conjuntos de cromossomos maternos ou dois conjuntos paternos, não se desenvolverá normalmente.

Um desafio genético complexo

Nos anos 2000, pesquisadores conseguiram criar um camundongo fêmea, chamada Kaguya, a partir de outras duas fêmeas, deletando parte de um gene para equilibrar a atividade genética. Entretanto, criar camundongos de dois pais exige muito mais modificações. No início de 2025, uma equipe de cientistas, também da China, conseguiu que alguns camundongos com dois pais chegassem à idade adulta após 20 modificações genéticas, mas os animais não estavam totalmente saudáveis nem férteis.

“Nossas descobertas, juntamente com conquistas anteriores relacionadas à reprodução uniparental em mamíferos, reforçam a hipótese de que o imprinting genômico é a principal barreira para o desenvolvimento completo de embriões uniparentais em mamíferos.”

— autores do estudo, na revista PNAS

Limites éticos e reações críticas

Apesar de os resultados em camundongos representarem um marco, a possibilidade de um dia dois homens criarem um embrião humano a partir apenas de seu material genético permanece, por ora, apenas teórica. Especialistas como Helen O’Neill, da University College London, reforçam que os efeitos dessa manipulação em humanos seriam altamente imprevisíveis, e que a correção epigenética como a feita nos camundongos provavelmente não seria aceitável do ponto de vista ético e regulatório.

Ainda assim, o método utilizado pela equipe chinesa chama atenção por não depender diretamente de edição genética tradicional, como CRISPR, mas de reprogramações epigenéticas — o que, em tese, poderia ser mais seguro e aceitável para aplicações futuras. Se, um dia, a técnica fosse adaptada para humanos, ela exigiria a produção de óvulos artificiais a partir de células masculinas e a superação de uma série de barreiras técnicas, éticas e legais.

Representatividade e dilemas

Para parte da comunidade LGBTQIAP+, a possibilidade remota de casais homoafetivos masculinos terem filhos biológicos representa um avanço simbólico — e potencialmente transformador — na busca por equidade reprodutiva. A reprodução assistida já ampliou significativamente o acesso à parentalidade por parte de casais de mulheres e pessoas trans, e novos caminhos tecnológicos poderiam, no futuro, fazer o mesmo para outros grupos.

No entanto, ativistas e pesquisadores lembram que esses avanços não devem ser usados para justificar práticas científicas que desrespeitam o bem-estar animal ou ignoram dilemas éticos centrais. Como destacou a organização PETA, é essencial garantir que a busca por representatividade reprodutiva não se torne argumento para legitimar intervenções violentas ou arcaicas.

“O movimento LGBTQ+ deve manter a equidade como princípio fundamental, e me revolta ouvir cientistas justificarem o uso de práticas arcaicas e dolorosas de tortura animal sob o pretexto de representatividade”, escreveu Jeffrey Brown, da PETA, em artigo publicado no site PinkNews.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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