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Diplomacia global para combater novas pandemias

Organizações internacionais se articulam para fortalecer inovação em saúde e garantir acesso equitativo a vacinas e medicamentos, visando respostas mais eficazes a futuras crises sanitárias

Os Estados Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) elaboraram em abril uma proposta de acordos sobre pandemias para consideração na próxima Assembleia Mundial da Saúde, em maio. A proposta visa fortalecer a colaboração global em prevenção, preparação e resposta a futuras ameaças pandêmicas | Imagem: OMS/Christopher Black Os Estados Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) elaboraram em abril uma proposta de acordos sobre pandemias para consideração na próxima Assembleia Mundial da Saúde, em maio. A proposta visa fortalecer a colaboração global em prevenção, preparação e resposta a futuras ameaças pandêmicas | Imagem: OMS/Christopher Black

Em meio a um cenário internacional cada vez mais incerto, a diplomacia científica se mostra fundamental para enfrentar os desafios da saúde global. O risco de novas pandemias – ainda que não iminente, mas uma possibilidade real – tem intensificado os debates e mobilizado lideranças em todo o mundo. O histórico recente reforça essa preocupação: a pandemia de covid-19 expôs falhas estruturais na resposta global às crises sanitárias, evidenciando a desigualdade no acesso a vacinas e insumos médicos.

Além disso, medidas polêmicas adotadas pelo governo de Donald Trump, como a saída dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS), abalaram o equilíbrio diplomático e impactaram diretamente os esforços internacionais de cooperação científica. A incerteza gerada por essas decisões ainda reverbera no cenário global, tornando essencial o fortalecimento dos laços entre nações para garantir respostas mais ágeis e eficazes a futuras emergências sanitárias.

Por isso, foi importante a segunda edição da Cúpula Global de Preparação para Pandemias (CGPP), no Rio de Janeiro. Em julho de 2024, representantes de dez organizações assinaram uma carta em defesa da soberania em saúde e inovação e no desenvolvimento de diagnósticos, vacinas e medicamentos para enfrentar emergências de saúde pública internacional no Sul Global

O documento, intitulado “Declaração do Rio de Janeiro“, propõe diretrizes para uma nova relação entre países ricos e pobres capaz de assegurar cooperações mais sólidas e equânimes para o enfrentamento de futuras crises sanitárias.

A pandemia de covid-19 foi marcada por uma corrida desenfreada de países para obter máscaras, equipamentos de proteção individual e respiradores. Agentes públicos de nações desenvolvidas chegaram a desviar cargas de insumos durante seu trânsito em aeroportos, cobrindo a oferta daqueles a quem se destinavam os produtos. 

Caso dos Estados Unidos, que nos primeiros meses de 2020 interceptaram um carregamento de 200 mil respiradores artificiais fabricados pela China e adquiridos pela Alemanha, pagando mais pelos produtos.

O problema se estendeu até o início de 2021, quando países ricos adquiriram vacinas ainda em produção, dando início a um processo de distribuição desigual dos imunizantes — no pico da pandemia, 25% da população mundial tinha comprado mais de 75% das vacinas. 

Monopólios farmacêuticos também foram autorizados a reter os direitos de propriedade intelectual, fazendo com que os imunizantes em alguns casos fossem vendidos por um preço até 10 vezes mais alto do que seu custo de produção. 

“A falta de solidariedade deixou os países pobres em uma situação delicada, e isso comprometeu as estratégias globais de enfrentamento do novo coronavírus”, comenta Mario Moreira, presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das organizadoras da CGPP, ao lado do Ministério da Saúde e da Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI).

Para superar tais disparidades, a Declaração do Rio Janeiro insta países e instituições a aumentarem a cooperação internacional em ciência e tecnologia (C&T), acelerando a pesquisa, a transferência de tecnologia e os processos de inovação para a produção de vacinas, medicamentos, ferramentas de diagnósticos e outras tecnologias de saúde que possam ser úteis contra futuras pandemias. 

O documento também pede para que instituições acadêmicas e de pesquisa em países em desenvolvimento se mobilizem para aumentar seus esforços de produção de conhecimento, forjando alianças estratégicas para desenvolver políticas apropriadas para o enfrentamento de desafios atuais e futuros. 

“Não há estratégia hoje que dê conta de produzir seis bilhões de doses de vacina em pouco tempo, contra uma nova emergência, sem a participação dos países do Sul Global”, destaca Mario Moreira, da Fiocruz. 

O documento parte da constatação de que o agravamento da crise climática e a degradação do meio ambiente têm alterado os padrões de dispersão de doenças infecciosas, aumentando o risco de seres humanos entrarem em contato com patógenos que podem causar novas crises sanitárias – e de que o mundo continua mal preparado para outra pandemia, carecendo de vigilância colaborativa, ferramentas de diagnóstico e financiamento. 

Um estudo publicado em 2023 por pesquisadores do Center for Global Development, nos Estados Unidos, estimou que há 19% de chance de uma nova pandemia nos próximos cinco anos. Considerando os próximos 10 anos, a chance é de 35%. 

Fortalecer a pesquisa global

Há algum tempo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem destacado a necessidade de que pesquisadores e governos fortaleçam e acelerem a pesquisa global em preparação para novas pandemias, enfatizando a importância de expandir as investigações para incluir famílias inteiras de patógenos que podem infectar humanos.

Milhares de vírus e bactérias conhecidos podem contaminar humanos, mas um número relativamente pequeno causou pandemias ou epidemias ao longo da história. 

Muitas das informações necessárias para a tomada de decisões sobre esses patógenos estão indisponíveis, não documentadas na literatura ou não são adequadas para uma revisão sistemática. 

O número específico de patógenos a ser considerado pode mudar com o tempo, à medida que a compreensão das doenças infecciosas pelos pesquisadores se expande e novos patógenos surgem ou os já conhecidos evoluem.

Durante a Cúpula Global de Preparação para Pandemias, a OMS divulgou as conclusões de um processo global de priorização de patógenos iniciado em 2020 envolvendo mais de 200 cientistas de mais de 50 países que avaliaram as evidências relacionadas a 28 famílias virais e um grupo central de bactérias, abrangendo 1.652 patógenos

O relatório da OMS destaca 27 patógenos (e suas variações) que devem ser observados com atenção pelas comunidades médica e científica. As versões anteriores do documento, de 2017 e 2018, continham apenas 11 microrganismos.

De acordo com a organização sem fins lucrativos FIND, que conecta países e comunidades, financiadores, tomadores de decisão, provedores de serviços de saúde e desenvolvedores, dos patógenos com potencial de surto, o novo coronavírus é o único para o qual há prontidão diagnóstica adequada. 

“É importante que os países tenham canais de interlocução bem constituídas e que possam ser acionados rapidamente em situações de risco de crises sanitárias”, destaca Amâncio Jorge Silva Nunes de Oliveira, coordenador-executivo da Escola Avançada de Diplomacia Científica e da Inovação (InnScid) e professor do Centro de Estudos das Negociações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).

Uma iniciativa recente nesse sentido é a Global Health Security Strategy, lançada em abril pelos Estados Unidos e que prevê apoio na área de saúde pública a mais de 50 países, de modo que estes possam prevenir, detectar e controlar surtos de forma mais eficaz. 

O programa também pretende fortalecer as capacidades globais de segurança sanitária por meio de parcerias bilaterais

“Essa estratégia se dá na intersecção entre segurança de saúde e diplomacia científica, uma vez que se baseia no diagnóstico feito pelo governo norte-americano de que não é possível enfrentar futuras crises sanitárias globais sem parcerias internacionais“, explica Oliviera.

A estratégia dos Estados Unidos se dá em um momento em que os 194 estados-membros da OMS lutam para ratificar um acordo global sobre como enfrentar novas pandemias. Embora os EUA participem dessas negociações, historicamente, o país tem preferido acordos bilaterais como uma forma mais eficiente de fortalecer a segurança global em saúde. 

As conversas se desenvolviam desde 2021, sendo o Brasil representante da região das Américas na mesa diretora dos trabalhos da negociação. 

Em maio, durante a 77ª Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, Suíça, os países voltaram a se reunir para debater um instrumento internacional com diretrizes de preparação, prevenção e resposta a novas pandemias, mas divergências entre os participantes impediram que o acordo avançasse.

A ideia era que o tratado estabelecesse políticas juridicamente vinculativas para os países-membros da OMS sobre vigilância de agentes patogênicos, compartilhamento rápido de dados sobre surtos e produção local e cadeias de abastecimento de vacinas e tratamentos, entre outros pontos. 

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, participa da abertura da Cúpula Global de Preparação para Pandemias, realizada em julho de 2024, no Rio de Janeiro | Imagem: Rafael Nascimento/MS
A ex-ministra da Saúde, Nísia Trindade, participa da abertura da Cúpula Global de Preparação para Pandemias, realizada em julho de 2024, no Rio de Janeiro | Imagem: Rafael Nascimento/MS

O Órgão de Negociação Intergovernamental (INB, na sigla em inglês), responsável pela coordenação das conversas, planeja pedir mais tempo para continuar as discussões.

De acordo com Igor Barbosa, chefe da divisão de saúde global do Ministério das Relações Exteriores, a principal dificuldade tem sido a questão do acesso a medicamentos e insumos médicos necessários para o enfrentamento de novas pandemias – o que envolve, entre outras coisas, acordo de transferência de tecnologia para produção local, transparência de preços e questões regulatórios. 

“Os países centrais, sobretudo os do G7, não estão dispostos a renunciar de suas prerrogativas e seus privilégios”, afirma Barbosa.

Outro tema delicado é o de financiamento para a criação de um sistema multilateral, liderado pela OMS, para acesso a patógenos com potencial pandêmico detectados em diferentes países e aos insumos utilizados para combatê-los. 

“Os países em desenvolvimento têm se mostrado relutantes em compartilhar informações sobre os seus agentes patogênicos sem garantias de acesso a vacinas e outros produtos de saúde”, diz Barbosa, do Ministério das Relações Exteriores.

“Por sua vez, os países ricos dizem que já oferecem uma série de mecanismos de apoio financeiro ao mundo em desenvolvimento nesse sentido.”

Um deles é o Fundo Pandêmico, criado em setembro de 2022 e dedicado ao fornecimento de subsídios plurianuais para ajudar países de baixa e média renda a se prepararem para futuras pandemias.

Sediado pelo Banco Mundial e capitaneado pelos Estados Unidos, o fundo recebeu 179 inscrições de 133 países em sua primeira chamada e concedeu, em julho de 2023, US$ 338 milhões para ajudar 37 países a fortalecer sua capacidade de prevenir, se preparar e responder a pandemias. 

Os Estados Unidos prometeram em julho de 2024 mais US$ 667 milhões (aproximadamente R$ 3,7 bilhões) para o fundo, enquanto a Alemanha se comprometeu com US$ 54 milhões (R$ 304 milhões).

Esforços no Brasil

O Brasil também vem se articulando com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), braço da OMS, para reforçar os mecanismos existentes de aquisição de vacinas, medicamentos e diagnósticos. 

“Nossa estratégia tem se desenvolvido no sentido debater, explorar oportunidades, mapear desafios, identificar soluções inovadoras e promover a conexão entre os diversos atores do ecossistema de inovação e produção de vacinas e outras tecnologias em saúde, de modo a fortalecer as cadeias de valor para produção local desses insumos na América Latina”, comenta Barbosa. 

Um passo importante nessa direção foi o lançamento pelo governo brasileiro de um plano de apoio à construção do Complexo Econômico-Industrial da Saúde e de Inovação para o Sistema Único de Saúde (SUS), com investimentos públicos e privados entre R$ 42 bilhões e R$ 60 bilhões até 2026.

O objetivo é estimular o desenvolvimento de indústrias de base química, biotecnológica, mecânica, eletrônica e de materiais, além de serviços de saúde no país. Espera-se, com isso, ampliar, em dez anos, de 42% para 70% a fabricação nacional dos insumos e equipamentos adquiridos pelo SUS, reduzindo a dependência externa.

Outro movimento importante se deu no Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fiocruz, que em agosto passou a integrar a rede da CEPI de fabricantes de vacinas no Sul Global. 

“A iniciativa irá nos apoiar no estudo de moléculas com potencial para o desenvolvimento rápido de medicamentos e vacinas contra doenças infecciosas que possam causar epidemias ou pandemias, garantindo o abastecimento de países menos favorecidos, para que não aconteça o que aconteceu durante a pandemia”, explica Maurício Zuma Medeiros, diretor de Bio-Manguinhos.

A parceria prevê investimento de US$ 17,9 milhões (aproximadamente R$ 92 milhões) da CEPI para diversificar as capacidades de fabricação de vacinas de Bio-Manguinhos/Fiocruz, expandindo novas plataformas de tecnologia de imunizantes de resposta rápida de mRNA e vetor viral contra doenças infecciosas. 

A Fiocruz tem uma ampla e antiga tradição em diplomacia em saúde, orientada sobretudo à cooperação estruturante, ajudando os países a desenvolverem seus próprios sistemas de saúde e de pesquisa em saúde. 

Um exemplo de sucesso nesse sentido é Moçambique, país no qual a Fiocruz abriu seu primeiro escritório internacional, em 2008. 

“Ajudamos na criação da Sociedade Moçambicana de Medicamentos S.A, fábrica de medicamentos que hoje alimenta o sistema de saúde moçambicano”, diz Moreira. 

No âmbito regional, a Fiocruz se articula com a OPAS para fortalecer o multilateralismo na América Latina e no Caribe, por meio de projetos de qualificação dos países da região nas áreas de diagnóstico, desenvolvimento e produção de medicamentos e vacinas. 

A ideia, diz Moreira, é criar uma rede regional bem coordenada capaz de responder a novas pandemias e garantir uma preparação contínua. 

“A história nos ensina que a próxima pandemia é uma questão de ‘quando’, não de ‘se”, afirma Moreira. 

“É preciso uma articulação multilateral envolvendo cientistas e instituições de vários países para avançar em nosso conhecimento sobre os patógenos que nos cercam.”

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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