SOBRE
#Entrevistas
04.07.2024 Epidemiologia

Desastres climáticos favorecem disseminação de doenças tropicais

Catástrofes como a do Rio Grande do Sul e a savanização da Amazônia também têm impactos epidemiológicos, explica Antonia Pereira, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)

Antônia Pereira, pesquisadora do INPA: “Se não cuidarmos de nossas cidades e das pessoas que nelas vivem, vamos ter novos episódios como os do Rio Grande do Sul” | Imagem: Rodrigo Cabral/ASCOM-MCTI

Na ficção, a comunidade científica não foi ouvida no filme Não Olhe para Cima (Don’t Look Up, de 2021), que alertava para um meteorito capaz de destruir a Terra. No Brasil da vida real, alertou-se sobre o impacto das ações humanas no meio ambiente, incluindo o processo de savanização na Amazônia, causado pelo desmatamento.

Os mesmos avisos foram ignorados e levaram a eventos extremos, como a tragédia que assola parte da população do Rio Grande do Sul. 

Em entrevista ao Science Arena, a bióloga Antonia Maria Ramos Franco Pereira, doutora em biologia celular e molecular fala sobre o risco de transformações no clima levarem a novas epidemias.

“Quando se modifica o ambiente, também se modifica a temperatura e os ventos, a umidade, o solo e muito mais, incluindo doenças transmitidas por insetos”, explica Pereira, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), organização que dirigiu entre 2018 e 2023. Ela foi a primeira mulher a comandar o INPA em mais de 70 anos desde a fundação do instituto.  

Na conversa, Pereira também comentou sobre os desafios de ser mulher pesquisadora e gestora na região amazônica.

Science Arena – Como as mudanças climáticas levam a eventos extremos, como o que aconteceu no Rio Grande do Sul?

Antonia Pereira – A ciência – inclusive nós, no INPA, por meio dos programas LBA (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera) e Amazon-Face – já vinha indicando que essas mudanças ocorreriam, incluindo a possibilidade de savanização da região amazônica. Os desastres decorrentes de muitas chuvas e aumento da temperatura têm muito a ver também com a infraestrutura das cidades.

O Amazon-Face é um projeto de investigação científica de longo prazo, realizado em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o governo do Reino Unido, e que busca trazer respostas para uma grande incerteza em relação ao futuro da Amazônia: entender como o aumento de dióxido de carbono (CO2) atmosférico impacta a floresta, a biodiversidade e os chamados serviços ecossistêmicos.

O Brasil soma outros eventos climáticos extremos nos últimos anos, entre eles a seca registrada na região Norte. Como tais eventos interferem na epidemiologia de doenças tropicais?

Quando se altera o ambiente, também se modifica a temperatura e os ventos, a umidade, o solo e muito mais, incluindo a circulação de doenças transmitidas por insetos. Há o risco de ocorrer a readaptação de patógenos diversos e do próprio inseto transmissor às novas condições ambientais.

Alguns podem ser eliminados e não conseguir se manter. Mas se adaptam e podem levar a condições extremas na incidência de doenças, incluindo o surgimento de novas epidemias.

Quando há desmatamento, os hospedeiros, assim como seus vetores, podem sair daquele ambiente local e ir para ambientes urbanos. Isso favorece o aumento da prevalência de determinadas doenças, em diferentes regiões do país.

Por conta do alagamento de centenas de cidades no Rio Grande do Sul, houve grande salto nos casos de diarreias, hepatite A, dengue e leptospirose. Com essa situação já instaurada, quais são as medidas sanitárias mais potencialmente eficazes?

Em alagamentos, como os vistos no desastre do Rio Grande do Sul, há contaminantes decorrentes da presença de microrganismos e bactérias. A leptospirose é causada por uma bactéria da urina de ratos e outros animais. As ações, em meio ao desastre, são complicadas. A população precisa de medicamentos, tratamento de urgência e o cuidado envolve evitar a contaminação pelo esgoto.

É necessária atenção sanitária, com foco nos animais hospedeiros, que são fontes de infecção. Além de leptospirose, há o risco de cólera e diarreias graves. É fundamental examinar as pessoas e diagnosticar os casos nessas regiões. Agir de forma permanente, não apenas paliativa, como em emergências.

No Laboratório de Leishmaniose e Doença de Chagas (LLDC), sob sua coordenação no INPA, quais têm sido os avanços no entendimento sobre doenças parasitárias para se caracterizar e definir os diferentes tipos de enfermidades?

O laboratório tem um histórico de estudos ecoepidemiológicos, voltados para a distribuição geográfica e diversidade, pois a Amazônia confere ao nosso país uma enorme biodiversidade de espécies, vetores transmissores e patógenos.

A leishmaniose, principalmente no estado do Amazonas, ocorre na forma tegumentar [que causa úlceras nas mucosas e na pele]. Em Santarém, no Pará, temos a ocorrência da forma visceral [que afeta órgãos internos, como fígado, baço e medula óssea], que é a que pode levar à morte.

Como estão, em seu laboratório, as pesquisas in vitro ou na fase clínica de novas abordagens de diagnóstico e tratamento das leishmanioses e outras doenças?

Estamos focados em diagnóstico, isolamento, caracterização bioquímica e molecular desses patógenos e de processos de infecção desses vetores. No laboratório, estudamos a resistência do patógeno aos medicamentos, como o Glucantime, oferecido no Sistema Único de Saúde (SUS) e usado para a forma tegumentar. 

As pessoas que moram nos ramais [caminhos perpendiculares a rodovias amazônicas] têm dificuldades até de acesso ao transporte para ir para uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Imagine então ir para uma UBS para tomar injeção intramuscular ou receber tratamento endovenoso diário?

Com a proposta de desenvolver um tratamento tópico (em creme ou pomada) estamos estudando, desde 2003, o uso de produtos naturais. Testamos muitas amostras de plantas. Atuamos com nanopartículas, pois se é uma doença que ocorre na pele, é importante que o tratamento que possa atravessar a pele e chegar até onde se encontra o parasita, que é na região dérmica.

Chegamos a um produto natural de uma planta encontrada nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, com poder anti-inflamatório. Nós já temos a patente. Fracionamos o material e isolamos substâncias. De vinte substâncias, nós vimos que duas apresentavam resultados muito bons.

Em modelo animal, os resultados também foram eficazes. Estamos partindo agora para estudo clínico de fase 1, no qual vamos avaliar como a microemulsão pode ser realizada e observaremos se há reação cutânea e alérgica em pessoas saudáveis, que nunca tiveram contato com o patógeno.

O plano é abrir uma startup, com a intenção de elevar a substância aos níveis 4 ou 5 da escala de maturidade tecnológica (TRL).

Quando se trata de doenças tropicais negligenciadas, as ações costumam ser paliativas. Para quais determinantes sociais devemos estar mais atentos? O que é necessário fazer para que surtos e epidemias sejam prevenidos?

Como diz o professor [Carlos Medicis] Morel [médico, biofísico e pesquisador, membro titular da Academia Brasileira de Ciências], quando falamos em doenças tropicais negligenciadas estamos, na verdade, diante de pessoas que são negligenciadas.  Pessoas que vivem no limite de uma qualidade de vida mínima, em infraestrutura sanitária e de moradia.

Quando eu dava aula, sempre falava de crianças com lombrigas e que não tinham sapatos. Sem o sapato, colocam um saquinho plástico, para não andarem em contato com o solo. Temos, principalmente na região Norte, a falta de água filtrada, com esgoto a céu aberto.

A vida das pessoas precisa ter uma melhor qualidade ambiental e de alimentação. Se não cuidarmos de nossas cidades e das pessoas que nelas vivem, vamos ter novos episódios como os do Rio Grande do Sul.

Quais foram as consequências para o país, em um cenário de pandemia, da gestão de um governo federal que promoveu desmonte ambiental, ataques à ciência, incluindo veiculação de notícias fraudulentas sobre vacinas e outras questões sanitárias?

 Os países, de modo geral, não estavam preparados para uma pandemia. No âmbito da ciência, a produção das vacinas foi possível pelo fato de o conhecimento prévio e a produção estarem avançados. Não gosto muito de discutir política. Não tenho lados. Sou uma pessoa neutra. Então, não cabe a mim julgar um ou outro. Por sua vez, houve, nas pessoas, dificuldade em acreditar na ciência, principalmente na vacina.

As pessoas em geral ainda não sabem como se produz um imunizante. A mídia precisa mostrar como se faz uma vacina, como ela atinge o organismo e previne doenças. A gente precisa pensar, cuidar e, talvez, usar as mídias sociais de forma mais educativa e objetiva, sem dificultar muito e com qualidade. 

Na pandemia, todos os olhares estavam para a covid-19 e isso afetou o controle epidemiológico de outras doenças. Esse cenário foi um desafio a mais para você como a primeira mulher a dirigir o INPA?

Ser uma mulher que dirigiu o INPA em mais de 70 anos de instituição, que até então havia sido gerenciada apenas por homens, certamente foi desafiador. E gosto de desafios. Eu já tinha aprovada uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para ir a Washington, nos Estados Unidos, participar de um estágio de pós-doutorado de um ano. Porém, resolvi aceitar o desafio na gestão. Primeiro, porque nenhuma mulher até então havia passado por um processo de seleção para uma candidatura como essa no INPA.

E, até certo ponto, em um ambiente como a Amazônia, como em toda a região Norte do Brasil, a presença da mulher é sempre desafiadora em altos cargos. 

Sou carioca e virei uma amazonense apaixonada por essa terra. Uma terra que precisa tanto de desenvolvimento, crescimento, melhorias e de um olhar especial para as comunidades indígenas e os ribeirinhos. Nem sempre podemos fazer tudo o que almejamos, pois se esbarra em legislação e burocracia.

Os cientistas também têm os seus desafios, pois discordam uns dos outros, o que é salutar. Mas é um discordar que traz novas oportunidades. Mesmo com orçamentos variáveis em Ciência e Tecnologia, foram positivos os contatos com os ministros Marcos Pontes, Paulo Alvim e, mais recentemente, Luciana Santos. Não tenho nada a reclamar de nenhum deles. E, diante de todo o desafio, ressalto que tive uma excelente equipe de trabalho e companheirismo de meu marido e família. Tenho gratidão por cada pessoa. Não esquecendo dos amigos e de minha equipe do LLDC no INPA, de que sou líder, e que seguraram as pontas com a minha distância devido à gestão institucional.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

Entrevistas

0 Comentários
Oldest
Newest Most Voted
Inline Feedbacks
View all comments
Receba nossa newsletter

Newsletter

Receba nossos conteúdos por e-mail. Preencha os dados abaixo para assinar nossa newsletter

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!
Cadastre-se na Newsletter do Science Arena