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27.09.2024 Cidadania

“Acesso à ciência é um direito humano”

Gabriela Frías-Villegas, da Universidade Nacional Autônoma do México, propõe abordagens de divulgação de ciência mais inclusivas e participativas, para além da função de informar o público

Para a pesquisadora mexicana Gabriela Frías-Villegas, da UNAM, comunidades vulnerabilizadas, como usuários de drogas, pessoas em situação de rua, populações rurais mais pobres e refugiados, muitas vezes são deixadas de lado em discussões envolvendo aspectos científicos e tecnológicos que dizem respeito a elas | Imagem: Divulgação/UNAM

A ciência é um direito humano e um dos meios para a população compreender isso é facilitando o acesso à informação. A afirmação é da pesquisadora mexicana Gabriela Frías-Villegas, nascida na Cidade do México em 1975. Formada em matemática e literatura inglesa, ela é doutora em Filosofia da Ciência pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), onde atua como investigadora no Programa Universitário de Direitos Humanos.

Entre suas linhas de pesquisa está a comunicação de ciência como um direito humano, assunto discutido por ela e outros autores em artigo publicado em março no Journal of Science Communication (JCOM).

O trabalho destaca que tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, quanto o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, consideram o direito à ciência um direito humano universal – uma vez que o conhecimento científico é fundamental para a dignidade e a autonomia humanas.  

Apesar disso, Frías-Villegas e os demais autores argumentam que é necessário estabelecer novas estratégias nos atuais projetos de comunicação científica, especialmente dentro de comunidades vulnerabilizadas, ​​para garantir o cumprimento deste direito universal.

“É preciso garantir acesso aos benefícios do progresso científico e tecnológico e permitir que as comunidades se apropriem e transformem o conhecimento científico para seu próprio desenvolvimento, reconhecendo a importância dos saberes locais por meio do diálogo intercultural”, escrevem.

Os autores do estudo defendem, portanto, a criação de ações de divulgação científica mais inclusivas, que considerem a participação do público-alvo nos processos de comunicação.

Isso significa, em boa medida, reconhecer o contexto social e cultural de determinada comunidade e estimular a colaboração dos cidadãos na criação de materiais de divulgação.

Em entrevista ao Science Arena, Frías-Villegas conta como têm pesquisado este tema a partir de casos concretos no México.

Science Arena – No artigo publicado no JCOM você e seus coautores discutem quatro casos práticos de comunicação científica realizados com populações vulnerabilizadas em diferentes regiões do México. Sua pesquisa se dedica a quais características destes casos?

Gabriela Frías-Villegas – O primeiro caso analisado foi o dos habitantes de Atzzintla, uma comunidade rural próxima ao Observatório de Raios Gama HAWC (High-Altitude Water Cherenkov Gamma-Ray Observatory). Neste caso, a opinião da comunidade não foi considerada na construção do Observatório, embora a água das nascentes da região tenha sido utilizada na iniciativa e várias árvores do entorno tenham sido cortadas.

O segundo caso incluiu a comunidade de consumidores de opiáceos na fronteira norte do México. As campanhas de saúde direcionadas a esta comunidade têm como foco a prevenção do uso de drogas. No entanto, as pessoas da comunidade são altamente adictas e estão em constante perigo de infecções, porque muitos usam a mesma agulha [para aplicação]. Além disso, eles facilmente sofrem overdoses, pois consomem drogas adulteradas.

O terceiro caso é o dos habitantes de uma comunidade próxima ao sítio arqueológico de Chalcatzingo, situado no vale de Morelos. Neste caso, as opiniões dos membros da comunidade não foram levadas em consideração quando as autoridades decidiram restringir o acesso ao local, que fazia parte das terras da comunidade local há séculos. O último caso é o do projeto Pilares, em que foram criadas oficinas de ciências para jovens de comunidades vulnerabilizadas ​​da Cidade do México.

A prática de falar sobre ciência deveria ir além da função de esclarecer curiosidades do público em geral?

A comunicação científica tem sido utilizada muitas vezes como algo “divertido”, “curioso” para crianças ou jovens. A ciência é de fato todas essas coisas, não podemos negar isso. No entanto, torna-se algo mais profundo quando visto da perspectiva dos direitos humanos.

O direito humano a um ambiente limpo é violado em muitos países ao redor do mundo. Há alguns meses, quando tivemos, no México, o privilégio de ver um eclipse solar total, percebemos a importância do direito humano de ter céus sem poluição luminosa.

Alguns destes direitos não estão devidamente legislados, o que constitui um problema importante, uma vez que as autoridades não obrigam o seu cumprimento.

Como é possível promover uma comunicação sobre ciência que possa impactar positivamente as pessoas para que tomem melhores decisões em suas vidas?

Ao trabalhar com a divulgação científica como um direito humano, a ideia não é apenas promovê-la entre os membros de diferentes comunidades, mas também “cocriar” com as pessoas projetos que sejam realmente relevantes para elas.

Um dos casos estudados por Gabriela Frías-Villegas é o de uma comunidade impactada pela construção, em 2015, do Observatório de Raios Gama HAWC (High-Altitude Water Cherenkov Gamma-Ray Observatory), dedicado à pesquisa sobre raios cósmicos e raios-gama no México | Imagem: hawc-observatory.org

Como é possível identificar que determinado projeto de comunicação científica não está devidamente conectado com a realidade de uma comunidade específica?

Geralmente, pode-se identificar que um projeto não está conectado com a realidade da comunidade quando os membros dessa comunidade não estão envolvidos nas discussões e no processo de criação do projeto de pesquisa.

Ao trabalhar com uma comunidade, a primeira coisa que os comunicadores de ciência precisam fazer é aprender e compreender o contexto dessa população, seus rituais, língua materna, preocupações etc.

É preciso que haja diálogo horizontal entre todos os indivíduos envolvidos em um projeto de pesquisa – cientistas, gestores e outros atores sociais. Dessa forma, é possível chegar a acordos sobre como criar e colocar em prática ações de comunicação científica que sejam relevantes para determinada comunidade socialmente vulnerabilizada.

Qual é o principal ganho para as populações mais vulnerabilizadas ​​ao serem incluídas no processo científico?

Comunidades vulnerabilizadas, como usuários de drogas, pessoas em situação de rua, populações rurais mais pobres e refugiados, muitas vezes são deixadas de lado em discussões envolvendo aspectos científicos e tecnológicos que dizem respeito a elas. Essas comunidades poderiam se beneficiar do conhecimento científico, mudar suas práticas e tomar melhores decisões em suas vidas e seus ambientes.

No artigo na JCOM, seu grupo afirma que a expectativa é que as autoridades mexicanas responsáveis ​​pela gestão das políticas públicas de saúde apoiem e implementem ações focadas em ciência e direitos humanos. Que medidas seriam mais eficazes?

Em junho, foi eleita uma nova presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, que é física de formação e trilhou carreira como cientista. Sheinbaum anunciou a bióloga Rosaura Ruiz Gutiérrez, também professora da UNAM, para assumir a gestão do Ministério da Ciência, Humanidades, Tecnologia e Inovação do México. Gutiérrez é uma cientista bastante reconhecida em nosso país.

Tanto Sheinbaum quanto Gutiérrez são conscientes da importância da ciência e da divulgação científica. Esperançosamente, tendem a dar um forte impulso a programas que podem beneficiar as comunidades mais vulnerabilizadas ​​do México, como membros de comunidades rurais ou indígenas, mulheres que vivem em locais pobres ou violentos, pessoas com dependências química, sem-abrigo, migrantes, refugiados etc.

Eu e meus alunos propomos a criação de novos programas de pesquisa em conjunto com membros dessas comunidades vulnerabilizadas, ​​que abordem assuntos e problemas que são importantes para essas populações.

Quando realizamos este tipo de projeto, o mais importante não é seguir os interesses do cientista, como transmitir apenas o conhecimento que lhe é relevante, mas dar voz aos membros da comunidade e respeitar seus direitos humanos.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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