
O potencial transformador da diversidade na tecnologia
Diversificar o desenvolvimento tecnológico não significa apenas inovar em tecnologias, mas incluir nesse processo diferentes gêneros, raças, saberes e perspectivas

A tecnologia é um produto humano. E, como tal, reflete os contextos e as escolhas de quem a cria. Portanto, as tecnologias não são neutras.
O grande problema é que a inovação tecnológica, como temos visto, vem sendo moldada por um grupo limitado de vozes. E isso tem consequências graves.
Tecnologias desenvolvidas por equipes homogêneas tendem a ignorar realidades distintas, perpetuando – e, no médio e longo prazo, ampliando – desigualdades sociais, raciais e de gênero.
A inteligência artificial, por exemplo, área que tem avançado exponencialmente nos últimos anos, se baseia emgrandes volumes de dados para aprender e tomar decisões.
Esses dados, por sua vez, refletem a sociedade – que, infelizmente, está longe de ser caracterizada pela equidade.
A ausência de diversidade nas equipes de tecnologia leva à criação de produtos que não são pensados para o uso de todas as pessoas.
Isso vai desde o desenvolvimento de algoritmos até a concepção de interfaces digitais que não consideram a pluralidade de corpos, culturas e formas de interagir com o mundo.
Um caso emblemático é o dos sistemas de reconhecimento facial, que, por anos, funcionavam de forma menos eficiente para pessoas negras.
Um estudo de pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, e da Microsoft apontou que esses sistemas falhavam em identificar corretamente mulheres negras 34% das vezes, enquanto para homens brancos a taxa de erro era de apenas 1% – simplesmente porque os desenvolvedores não consideraram a importância de incluir dados e imagens mais diversos em seus sistemas.
Mas esse não é um problema exclusivo das tecnologias de ponta. Está presente em aparelhos simples como, por exemplo, dispensers de sabonete que não funcionam para mãos negras ou em aplicativos que não consideram a diversidade regional, linguística e cultural de países como o Brasil.
Ao ampliar o escopo de quem desenvolve tecnologia, passamos a criar soluções que, de fato, atendem a todas e todos.
Acredito que a tecnologia pode ser tanto um instrumento de liberdade quanto de opressão. Tudo depende, acima de tudo, de quem cria e dos usos que fazemos dessa criação.
Por isso, a importância de diversificar o desenvolvimento tecnológico não pode ser subestimada. A diversificação no desenvolvimento tecnológico também significa expandir as possibilidades da inovação.
O futuro da tecnologia está intrinsecamente ligado à capacidade de criar soluções para problemas complexos. E essas soluções surgem, principalmente, quando há uma confluência de ideias, perspectivas e vivências variadas.
Inovações tecnológicas precisam refletir essa diversidade para serem de fato transformadoras.
Inclusão como estratégia
Incluir mais mulheres, pessoas negras e de diferentes faixas etárias no desenvolvimento tecnológico não é, dessa forma, apenas uma questão de justiça social, mas uma necessidade estratégica.
Quando falamos de inovação, nos referimos a novas formas de entender o passado, pensar o presente e construir o futuro – algo que vem, obrigatoriamente, da tão bem-vinda heterogeneidade humana.
Precisamos também criar estruturas que incentivem essa diversidade na pesquisa tecnológica.
Políticas públicas, investimentos e iniciativas privadas que apoiem pesquisadores de diferentes contextos sociais, raciais e econômicos são cruciais para garantir que a inovação reflita a pluralidade da sociedade.
Isso significa promover bolsas de estudo, incentivos fiscais e programas de aceleração que incluam grupos sub-representados na área da tecnologia.

No Olabi, organização dedicada a diversificar a cena de tecnologia e inovação no Brasil, quando iniciamos nossa pesquisa sobre mulheres no mercado de tecnologia, a falta de representatividade logo ficou evidente.
Ao procurar no Google referências visuais de mulheres negras nessa área, percebemos que elas praticamente inexistiam.
Esse vazio nos motivou a realizar um mapeamento de profissionais negras, que, em seu primeiro ano, revelou quase 600 mulheres trabalhando com tecnologia em diversas regiões do Brasil.
Mas a simples contratação de pessoas oriundas de grupos sub-representados não é suficiente sem a criação de redes de apoio e espaços formativos contínuos que permitam a elas influenciar de forma real e duradoura o desenvolvimento tecnológico.
Nossa experiência com a iniciativa PretaLab, plataforma que conecta mulheres negras que são ou gostariam de ser da tecnologia, demonstra que, além de inserir mulheres negras nesse campo, é vital oferecer suporte por meio de mentoria, formação técnica e fortalecimento de redes profissionais.
As participantes podem, assim, se adaptar ao setor e, sobretudo, redefini-lo com suas próprias visões.
Isso é essencial também para garantir que novas perspectivas não sejam silenciadas por barreiras estruturais ou pelo isolamento profissional.
Redes que conectam indivíduos em posições de vulnerabilidade, proporcionando tanto capacitação técnica quanto suporte psicológico e comunitário, precisam existir para que a diversidade se converta em inovação.
Quando essas redes são criadas e fortalecidas, o impacto das ações transcende o ambiente imediato e começa a modificar a própria estrutura da indústria tecnológica.
Diversidade e inovação
A diversificação no desenvolvimento tecnológico passa ainda por fomentar mais diálogos entre diferentes áreas do conhecimento. A inovação, vou repetir, acontece quando diferentes perspectivas se encontram e se chocam.
Na prática, para além de incluir pessoas de diferentes gêneros e raças nas equipes, isso significa unir diferentes saberes.
Um exemplo dessa convergência entre áreas do conhecimento é o projeto Códigos Negros, iniciativa do Olabi que chega este ano à quinta edição.
A proposta é explorar as relações entre arte, tecnologia e cultura negra, reunindo artistas, tecnólogos e cientistas para repensar como a inovação pode ser moldada a partir da perspectiva afrodiaspórica.
Se não formos capazes de ampliar o escopo de quem cria as tecnologias do futuro, corremos ainda o risco de estagnar a inovação. Afinal, a criatividade floresce justamente nos espaços de intersecção entre diferentes visões de mundo.
O Brasil tem um potencial imenso para contribuir nesse campo. Somos um dos países que mais utilizam as tecnologias digitais no dia a dia.
Quando conseguirmos canalizar essa energia para a criação de inovações que reflitam nossa diversidade cultural e social, certamente nos tornaremos capazes de desenvolver soluções muito potentes.
Nesse processo, a educação midiática e o letramento digital desempenham um papel central.
A meta precisa ser formar cidadãos que sejam capazes de questionar a tecnologia e de entender seu impacto social.
Do contrário, se seguirmos apenas consumindo tecnologia, estaremos fadados a perpetuar um sistema que beneficia poucos e exclui muitos.
Sociedades que investem na diversidade estão mais preparadas para enfrentar crises, inovar em novas frentes e fomentar um desenvolvimento econômico e social mais equilibrado.
Para que as tecnologias continuem a avançar e oferecer soluções que tenham o poder de mudar o mundo de cima a baixo, elas precisam ser criadas por todas as pessoas – em toda a sua diversidade.
Silvana Bahia é codiretora executiva no Olabi, fellow da Ashoka Brasil, pesquisadora e mestre em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Considerada uma das 100 pessoas inovadoras mais importantes do mundo pelo The Future Laboratory, na Inglaterra, é colunista da Fast Company Brasil, onde compartilha insights sobre tecnologia e inovação. Editora do livro “Pode um robô ser racista?”, o primeiro da Coleção Pensando Amanhãs do Museu do Amanhã, lançado em 2023, quando recebeu o prêmio Destaques da Governança da Internet, concedido pelo Comitê Gestor da Internet (CGI).
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