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“Filantropia tem papel crucial no apoio à ciência”

Organizações filantrópicas devem ganhar mais relevância em cenários de restrições orçamentárias, diz France Córdova, ex-diretora da NSF dos EUA

A astrofísica France Córdova, presidente da Science Philanthropy Alliance: “Esperamos que projetos de pesquisa subfinanciados encontrem novas fontes de recursos, provenientes ou não do governo” | Imagem: Robb Cohen Photography & Video

O apoio à pesquisa passou por transformações significativas nas últimas décadas nos Estados Unidos. Esse movimento é marcado pela participação crescente de organizações filantrópicas e doadores individuais no sistema de financiamento de ciência e tecnologia daquele país,  segundo a revista Proceedings of National Academy of Sciences (PNAS) em editorial publicado no final de 2024.

Enquanto o financiamento federal para a pesquisa básica dos EUA caiu de 75% para 50% entre 1960 e 2021, a contribuição da filantropia saltou de 20% para aproximadamente 40% no mesmo período, informa o relatório Science Philanthropy Indicators 2023.

Em cenários de subfinanciamento da ciência e de redução da autonomia de agências públicas, a filantropia pode ganhar ainda mais relevância, afirmou ao Science Arena a astrofísica France Córdova, presidente da Science Philanthropy Alliance – organização sem fins lucrativos que reúne cerca de 40 entidades filantrópicas de apoio à pesquisa. Entre elas estão as fundações norte-americanas Simons e Bill & Melinda Gates e a britânica Wellcome Trust.

“Se os recursos federais para doenças infecciosas e mudanças climáticas diminuírem, estou confiante de que filantropos comprometidos com estas questões se esforçarão para enfrentar esse desafio”, disse Córdova em conversa por vídeo realizada no início de janeiro, quando se intensificaram os incêndios florestais na Califórnia (e um pouco antes da posse de Donald Trump).

A pesquisadora fala com a experiência de quem conhece profundamente os meandros sinuosos da política científica dos EUA. Córdova foi cientista-chefe da agência espacial norte-americana (Nasa) e dirigiu, de 2014 a 2020, a National Science Foundation (NSF), principal agência norte-americana de financiamento à ciência básica.

No novo mandato de Trump, a NSF foi obrigada a interromper subsídios, paralisar a revisão de projetos e demitir dezenas de servidores. “Nunca houve momento mais crítico para o trabalho científico como agora, diante dos inúmeros desafios globais que a humanidade enfrenta”, avalia.

Science Arena – A filantropia responde por mais de 40% do financiamento para ciência básica nos EUA. Qual é o papel dos filantropos na produção de conhecimento?

A filantropia está disposta a financiar projetos de alto risco, que normalmente necessitam de aportes maiores e de longo-prazo. Esse tipo de pesquisa nem sempre consegue apoio das agências públicas de fomento, mas podem chamar a atenção de organizações filantrópicas que querem fazer a diferença no mundo.

Muitas iniciativas de filantropia foram iniciadas por pessoas que assumiram riscos e não alcançaram suas riquezas sendo cautelosas. A filantropia dos EUA remonta ao século XIX e o país tem excelentes leis tributárias para fundações sem fins lucrativos.

Como a filantropia científica pode se articular com outras fontes de financiamento?

Os governos têm a obrigação de usar o dinheiro do contribuinte de forma eficaz, e as empresas privadas estão sob pressão para gerar lucro – o que as torna, em geral, mais avessas ao risco inerente à inovação. Por estar livre destas duas “obrigações”, entidades filantrópicas normalmente servem como catalisadores de projetos científicos ousados e pioneiros.

Organizações filantrópicas podem ser “parceiras de risco” de agências públicas de fomento quando identificam áreas para as quais o governo não consegue alocar facilmente novos recursos – como no caso de projetos de pesquisa e desenvolvimento [P&D] com alto risco tecnológico.

A filantropia pode ajudar a reduzir o risco (de-risking) nas fases iniciais de pesquisas de ponta em várias áreas, até que atinjam maturidade suficiente para atrair financiamento do governo ou da indústria.

Além disso, a filantropia pode dar suporte ao processo custoso de coletar, armazenar e analisar dados brutos de pesquisa, contribuindo para que novas informações embasem políticas públicas.

O novo governo Trump tem anunciado cortes orçamentários no financiamento de pesquisas, especialmente em áreas como doenças infecciosas e mudanças climáticas. Instituições filantrópicas poderiam preencher lacunas resultantes do subfinanciamento da ciência nos EUA?

Ainda não sabemos ao certo quais serão as prioridades de pesquisa e de financiamento sob o novo governo de Donald Trump. Então é melhor evitar fazer suposições. Dito isso, os filantropos são bastante generosos no apoio a projetos envolvendo assuntos como mudanças climáticas e transição energética.

Uma quantidade considerável de recursos provenientes de filantropia também tem sido alocada na luta contra doenças infectocontagiosas.

Filantropos geralmente buscam cobrir lacunas de financiamento em vários campos científicos. Há seminários e webinários dedicados a identificar áreas subfinanciadas.

Se o financiamento para doenças infecciosas e mudanças climáticas diminuir, estou confiante de que os filantropos comprometidos com estas questões se esforçarão para enfrentar esse desafio.

Observamos uma tendência entre bilionários, particularmente aqueles associados às big techs, de acenar para grupos anticiência. Isso representa um problema?

Vejo essa situação como uma oportunidade para a educação. O Congresso dos EUA está em constante mudança; novos membros são eleitos, alguns renunciam e outros se aposentam. Essa rotatividade contínua significa que sempre há novos representantes aos quais podemos informar sobre a importância da ciência.

Trump chegou a nomear alguns indivíduos excelentes para liderar o Escritório de Políticas Científicas e Tecnológicas da Casa Branca [OSTP, na sigla em inglês]. Conheço várias destas pessoas. Atuei como diretora da NSF durante quase todo o primeiro mandato de Trump [2017-2021], uma vez que tive uma nomeação válida por seis anos.

France Córdova assumiu a direção geral da National Science Foundation (NSF) em 2014, escolhida pelo então presidente Barack Obama | Imagem: Sandy Schaeffer/NSF/Wikimedia Commons

Na sua avaliação, portanto, o atual governo dos EUA não deverá promover tantos cortes de verba?

Há muito entusiasmo e financiamento para certas áreas da ciência e da tecnologia, entre elas a ciência quântica, a inteligência artificial e a biotecnologia. Como sempre, o Congresso e a nova administração federal vão determinar cuidadosamente quais projetos eles acreditam que merecem ser financiados.

É importante observar que nem todos os campos da ciência e da tecnologia receberão financiamento. Algumas áreas serão priorizadas, particularmente aquelas percebidas como capazes de aumentar a competitividade global do país e de dominar mercados específicos. Esta seleção faz parte do jogo, é um papel típico dos governos nacionais.

Claro que áreas e linhas de pesquisa consideradas importantes pela comunidade científica podem não receber tanta atenção e aportes do governo.

Nosso desafio será o de educar filantropos, Congresso e o público sobre a importância de áreas científicas menos financiadas. Esperamos que projetos subfinanciados encontrem novas fontes de recursos, provenientes ou não do governo.

Quais esforços a Science Philanthropy Alliance está fazendo para direcionar apoio a pesquisas capazes de antecipar o risco de novas pandemias?

Esta pergunta é importante. Os governos frequentemente enfrentam desafios para lidar com questões críticas e urgentes, pois seu orçamento é alocado anualmente.

Representantes eleitos cumprem mandatos que normalmente duram dois, quatro ou no máximo seis anos. Por isso, o planejamento de longo prazo frequentemente não é uma prioridade. Há uma ênfase na responsabilidade do setor privado em financiar estudos mais duradouros.

Cerca de 70% do financiamento filantrópico é hoje direcionado para as ciências médicas e da saúde. Isso reflete um esforço significativo para o avanço de pesquisas nestas áreas do conhecimento.

Você poderia citar alguns exemplos?

A Chan Zuckerberg Initiative [entidade ligada ao fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, e a sua esposa, Priscilla Chan] investiu bilhões de dólares, nos últimos anos, em pesquisas sobre doenças infecciosas, especialmente em universidades.

Há também um projeto que visitei recentemente, o Broad Institute, iniciativa conjunta do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade Harvard. Este instituto é substancialmente apoiado por doações filantrópicas, mas também conta com recursos de fundos governamentais.

O Broad Institute é bastante proativo na pesquisa em temas como doenças infectocontagiosas, câncer, obesidade e problemas cardiovasculares.

Depois de muitos anos trabalhando em agências governamentais, com destaque para o período em que dirigiu a NSF, o que a levou à Science Philanthropy Alliance?

A Science Philanthropy Alliance trabalha com vários pesquisadores que atuam como conselheiros e fornecem orientação especializada a filantropos interessados ​​em apoiar estudos científicos. Fui convidada a me juntar à coorte de conselheiros quando terminei meu trabalho na NSF em 2020, no auge da pandemia de covid-19. Estava voltando para casa e procurando novas coisas para fazer. Eu me tornei presidente da organização cerca de um ano depois, e tenho achado fascinante o papel crucial da filantropia no ecossistema de ciência, tecnologia e inovação.

O que você diria aos leitores do Brasil, onde a cultura de filantropia científica não é tão disseminada?

Acredito que se os líderes brasileiros – lideranças científicas e de setores industriais e membros do Congresso Nacional – examinassem modelos filantrópicos bem-sucedidos e seus resultados, isso poderia levar a mudanças positivas para a sociedade brasileira.

Temos nos esforçado para publicar percepções e estudos de caso em vários periódicos. Por exemplo, a revista Issues in Science and Technology, produzida pelas Academias Nacionais de Ciências dos Estados Unidos, divulga artigos valiosos sobre filantropia e seus êxitos.

O progresso na ciência não acontece da noite para o dia. Mas ao dispor de recursos variados de governos, entidades filantrópicas e empresas, é possível alcançar avanços significativos com a pesquisa de fronteira.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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