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17.03.2025 Inovação

Gestores de inovação: por favor, ouçam os usuários

Tecnologias só são efetivas quando desenvolvedores consideram como ela interfere, influencia e pode ser influenciada pela rotina de quem as usa

Quem definirá se algo (como uma bengala inteligente para pessoas cegas ou com baixa visão) é de fato uma solução será o usuário – nunca o desenvolvedor da possível solução e, muito menos, o gestor | Imagem: Shutterstock

Em minhas atividades de fomento à inovação, estou ajudando a organizar o primeiro Innovation Prize do país, conforme a nova legislação brasileira de apoio ao desenvolvimento tecnológico.

Nesse esforço, a Secretaria de Inovação do Estado do Paraná e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), em parceria, premiarão protótipos de bengalas (Bengalas Inteligentes) que antecipem obstáculos acima da linha da cintura para pessoas cegas ou com baixa visão.

Ao organizarmos o prize, nossa equipe, especializada no fomento à inovação, mas não em tecnologia assistiva, deparou-se com um mundo completamente desconhecido.

Do ponto de vista da orientação e mobilidade, pessoas cegas ou com baixa visão vivem um paradigma de vida muito diferente, de difícil compreensão para a equipe do projeto.

Com a iniciativa, nosso objetivo é estimular o desenvolvimento de soluções verdadeiramente úteis, independentemente da complexidade tecnológica. Aliás, fazemos isso porque acreditamos que a tecnologia é um meio para viver mais e melhor, e não um fim em si mesma.

Por isso, para desenharmos os critérios da premiação e o próprio desafio, não bastou apenas que simulássemos o uso da bengala vendados. Tivemos de vencer nossa ignorância com muita escuta. Com muita conversa. Com muito café.

O uso de uma dada tecnologia é, no final das contas, um processo humano, tácito, subjetivo e socialmente construído.

Para essa população, tal processo é muito, mas muito mais intenso. O primeiro esforço, que tomou bastante tempo, foi o de identificar, no caleidoscópio de problemas enfrentados por essa população, o que poderia ser tratado com os recursos disponíveis e, dentro desse escopo, o que dependeria de desenvolvimento tecnológico.

Isso não foi fácil. A vida da pessoa cega no maior país da América Latina é dura. A renda é baixa, a calçada não existe, o respeito é pequeno, e a lembrança de suas demandas, inexistente.

Múltiplos desafios

Selecionar um único desafio nesse cenário foi, em si, um grande exercício de tradução entre as necessidades concretas, as potencialidades tecnológicas e o mercado.

Em resumo, tivemos de mergulhar em um mundo novo, no qual tínhamos toda sorte de incompreensões.

Decidimos enfrentar o desafio de antecipar obstáculos acima da linha da cintura porque observamos que esse era um problema historicamente relevante e factível de equacionar do ponto de vista tecnológico.

Foi nesse momento que nós, pessoas videntes (sim, é assim que se chama), que nos dedicamos ao desenvolvimento de tecnologia, percebemos o quão ignorantes éramos sobre a realidade das pessoas cegas ou com baixa visão e os obstáculos diários que enfrentam.

De tudo que aprendemos, o mais contundente foi o fato de que mais recursos tecnológicos embarcados em uma bengala não significam, necessariamente, maior valor para o usuário. Na verdade, muitas vezes ocorre o oposto.

Nesse processo, compreendemos que o foco é essencial para a orientação e a mobilidade. É justamente por isso que ninguém sai usando uma bengala sem antes aprender a utilizá-la, por mais básica que ela seja.

É preciso saber como centrar a atenção no que importa e ignorar o que não oferece risco.

Uma bengala cheia de gadgets, beeps e vibrações pode parecer útil para o gestor de inovação, mas não para uma pessoa cega, que percebe o mundo de maneira diferente.

Em certo sentido, propõe-se aqui o oposto do que acreditava um dos grandes gurus deste início de milênio, Steve Jobs (1955-2011): “People don’t know what they want until you show it to them.”

Isso significa que a distância entre uma possibilidade tecnológica e uma solução efetiva, segura e funcional é longa e tortuosa.

Quem definirá se algo é uma solução ou não será o usuário – nunca o desenvolvedor da possível solução e, muito menos, o gestor.

Não se trata apenas de testar funcionalidades segundo métricas metrológicas precisas, mas de compreender como a tecnologia influencia e é influenciada pelo usuário e pelo ambiente em que essa pessoa vive sua rotina.

Desconectar potenciais usuários do desenvolvimento de soluções tecnológicas significa gerar “elefantes brancos” em série e impedir que a tecnologia seja efetivamente empregada para fomentar o desenvolvimento humano.

No final do dia, é tudo “humano, demasiado humano”.

Neste momento, o prize das bengalas está em andamento, e a equipe responsável continua descobrindo e aprendendo. Por tudo isso, vale dizer o óbvio, mas necessário, a desenvolvedores, policy makers e gestores de projeto: ouçam os usuários!

André Tortato Rauen é economista, doutor em política científica e tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Escola Superior do Tribunal de Contas da União (TCU). Também é assessor especial da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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