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20.07.2023 Biotecnologia

Como se preparar para a saúde digital

Pesquisadores de áreas médicas contam quais habilidades precisaram desenvolver para trabalhar com inteligência artificial

Ilustração: La Minna/Estúdio Voador

Nos idos de 2016, o professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Chiavegatto Filho resolveu aplicar uma técnica nova a um problema com o qual vinha trabalhando. “Buscava fazer a predição da expectativa de vida de cada cidade do Brasil a partir de dados de renda, escolaridade etc.”, conta. O pesquisador já tinha feito algumas análises utilizando métodos tradicionais da estatística, mas os resultados não o haviam agradado. “Então decidi aplicar um algoritmo que era considerado o estado da arte da época e foi como se um mundo novo tivesse se aberto.”

Depois dessa espécie de epifania, Chiavegatto Filho tomou a decisão de redirecionar toda a pesquisa que vinha conduzindo até aquele momento. “Mostrei os resultados para os meus alunos de mestrado e doutorado e dei alguns textos sobre inteligência artificial [IA] para eles lerem. Cerca de um mês depois a gente se reuniu de novo e eles me disseram, impressionados: ‘professor, isso muda tudo mesmo’. E todos entramos de cabeça na nova área”, lembra.

Hoje diretor do Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde, criado em 2017 na Faculdade de Saúde Pública da USP, Chiavegatto Filho integra um grupo crescente de profissionais que, diante das promessas oferecidas pela chamada saúde digital, acabaram direcionando suas carreiras para esse que é um dos campos com maior potencial de transformar a prática da medicina.

“A inteligência artificial vai ser a maior revolução da história da medicina. Todos os processos do sistema de saúde, desde a gestão até a prática clínica, vão ser profundamente transformados pelo uso de algoritmos”, afirma.

De acordo com o professor, a despeito dos enormes avanços já obtidos, vivemos apenas o início desse movimento. Quando se trata do atendimento clínico propriamente, da tarefa de fazer diagnósticos e prognósticos de pacientes, a IA é ainda e sobretudo um campo experimental. 

“A inteligência artificial aplicada à saúde é uma área muito consequente, são literalmente decisões de vida ou morte. Então na hora que formos colocar esses algoritmos na prática, a gente tem que ter certeza de que eles estão tomando a melhor decisão possível”, observa Chiavegatto Filho, da USP.

O cenário é completamente diferente no que diz respeito à gestão hospitalar. Atualmente, algoritmos são usados quase de forma corriqueira no gerenciamento mais eficiente de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e salas dos centros cirúrgicos, na otimização de filas de pacientes e outros processos internos dos hospitais, por exemplo.

“A inteligência artificial é fundamental para as operações do Einstein. Sem ela, hoje nós deixaríamos de realizar uma série de coisas”, conta Edson Amaro Jr, médico neurorradiologista e superintendente de Ciência de Dados e Big Data Analytics do Hospital Israelita Albert Einstein. Criado em 2016, o núcleo de ciência de dados conta hoje com 153 membros e tem cerca de 80 projetos em parceria com as três esferas de governo, além de outras instituições.

Big data e inteligência artificial são como faces da mesma moeda. “De um lado, big data não existe sem IA; de outro, a IA depende de um grande volume organizado de dados, o que é proporcionado justamente pelo big data”, diz Amaro Jr.

O núcleo montado no Einstein tem como objetivo sistematizar informações das mais diversas fontes para finalidades específicas de saúde. “É uma forma de organizar o conhecimento médico e torná-lo acessível aos algoritmos de uma maneira prática. Não adianta ter muitos dados se você não consegue analisá-los”, afirma o neurorradiologista.

Habilidades e requisitos

Fazer pesquisa nas áreas de interface entre saúde e tecnologia, como IA e big data, requer uma gama de habilidades específicas. “Eu costumo dizer que para trabalhar com ciência de dados são necessárias três coisas: você precisa saber programação, estatística e ter conhecimentos específicos da área em que você quer aplicar a tecnologia. Quem é formado na área da saúde já tem um terço”, diz Chiavegatto Filho. 

A boa notícia, para aqueles que querem aprender os outros dois terços, é que essa informação se encontra online. Hoje existem muitos cursos, pagos e gratuitos, nas áreas de estatística e programação à disposição na internet – como a série de aulas sobre inteligência artificial na saúde produzidas durante a pandemia por Chiavegatto Filho e disponível no YouTube.

Outro caminho formativo, aponta Amaro Jr, é cursar uma especialização em tecnologia da informação aplicada à medicina, já que até o momento não existem residências médicas no país sobre o tema. Um dos requisitos, portanto, é que o profissional que busca atuar e pesquisar nessa nova realidade precisa ir além da sua formação original.

“Você tem que estar preparado para ser um pouco médico, um pouco cientista de dados, um pouco engenheiro, um pouco matemático”, afirma Amaro Jr, do Einstein.

Ilustração: La Minna/Estúdio Voador

Os dois pesquisadores são exemplos disso. Chiavegatto Filho estudou economia antes de se dedicar à ciência de dados aplicada à saúde. “Eu sempre gostei muito de quantificar e ranquear as coisas’’ diz. “Comecei com a economia, que, de certa forma, busca quantificar o funcionamento social e econômico do mundo. Aos poucos, porém, foi ficando claro que a área que tinha maior potencial de usar dados para transformar decisões era a saúde, já que ela não só é a que coleta mais dados como também lida com questões muito complexas”.

Já Amaro Jr, antes de ser médico, pensou em estudar ciência da computação. “Fui aprovado no vestibular para ciência da computação e para medicina. Como a faculdade onde eu tinha prestado a primeira opção estava de greve, eu comecei a cursar medicina na USP e gostei”. No fim do período de graduação, Amaro Jr começou a trabalhar com imagens do cérebro humano, campo no qual fez mestrado e doutorado. “Sempre fiquei no meio caminho, tendo a medicina e a biologia como áreas de aplicação, e a computação, a matemática e a estatística como métodos”.

Outro requisito importante para atuar em um tema que articula conhecimentos de diversos campos do saber é a capacidade de trabalhar em grupo, ressalta Osvaldo Novais de Oliveira Júnior, diretor do Instituto de Física da USP de São Carlos (SP).

“Como não é possível aprender todos os conteúdos, esse profissional tem que saber dialogar com o pessoal da tecnologia e da inteligência artificial num ambiente interdisciplinar”, diz Oliveira Júnior, que colabora em pesquisas envolvendo saúde e IA.

Nem sempre, contudo, são necessários conhecimentos aprofundados dessas diferentes áreas. Oliveira Júnior usa a si mesmo como exemplo. “Eu não sou um programador, no fundo sei pouco de computação, mas entendo como as coisas funcionam, sei quais são as limitações e possibilidades e, assim, consigo conversar com os especialistas.”

Formação humanística

Com a evolução e a incorporação cada vez maior dos algoritmos e outras tecnologias na prática clínica, as decisões tomadas pelos médicos tendem a se tornar mais e mais parecidas. Nesse cenário, aponta o professor de física da USP de São Carlos, a formação humanística do profissional de saúde vai passar a ser cada vez mais relevante.

“Com o tempo, os sistemas de inteligência artificial fatalmente vão conseguir fazer diagnósticos mais precisos do que os médicos”, afirma Oliveira Júnior. “Portanto, quem vai se destacar na medicina é aquele profissional que tiver capacidade de olhar com sensibilidade o paciente como um todo, ter intervenções mais humanas, compreender a psicologia da pessoa que está doente, dos seus familiares e orientá-los”.

“Não deixa de ser uma grande ironia”, diz Chiavegatto Filho. “As pessoas em geral acreditam que vêm aí os robôs, a automatização da medicina, mas é o oposto que vai acontecer. Vêm aí a humanização da medicina”.

As possibilidades de pesquisa e atuação profissional nas áreas mais avançadas da medicina não se esgotam, porém, nas universidades e nos grandes hospitais. Vêm surgindo no país startups voltadas para a inovação no campo da saúde. Um dos exemplos mais bem-sucedidos é a Imunotera, fundada em 2016 em São Paulo.

A empresa desenvolveu uma plataforma de vacinas terapêuticas capaz de combater diversos tipos de câncer. O primeiro produto criado busca auxiliar no tratamento de pacientes com lesões pré-cancerígenas e câncer relacionados ao vírus do papiloma humano, o HPV.

“Diferentemente do conceito tradicional de vacina, as vacinas terapêuticas são um tratamento inovador que consegue ensinar o sistema imune do paciente a combater algo que já existe, e não a protegê-lo de algo que ainda vai acontecer”, explica Luana Raposo, CEO e cofundadora da Imunotera.

Assim, a tecnologia é capaz não só de tratar uma doença, mas também prevenir uma recidiva dela, o que é muito relevante no tratamento do câncer.

A ideia de criar a empresa surgiu quando Raposo cursava o doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da USP. “Nós descobrimos uma nova forma de ensinar o sistema imune que, em princípio, gera resultados melhores do que os alcançados por outros pesquisadores do mundo”. Assim, o gosto pela pesquisa aplicada se juntou ao espírito empreendedor da pesquisadora.

A vacina desenvolvida pela Imunotera teve resultados bastante promissores nos testes com animais. “Conseguimos uma regressão de 100% no modelo em camundongos e, no caso de tumores muito avançados, a gente foi capaz de associar a nossa vacina terapêutica com a quimioterapia, aumentando a eficácia do tratamento”.

O passo seguinte foi a prova de conceito em humanos, realizada em 2021. Agora, a startup tem buscado investidores para iniciar os testes clínicos, a etapa final de uma trajetória de pesquisa de mais de uma década.

A empresa tem colaboradores das mais diversas formações na sua cadeia de produção. “Na ponta inicial do desenvolvimento do produto, nós contamos sobretudo com biotecnologistas, bioinformatas e imunologistas. Já na parte final da cadeia, são necessárias pessoas que conheçam epidemiologia, para determinar a relevância de cada doença, e outras que tenham visão de mercado, para saber onde essa doença está acontecendo e qual o meu público-alvo”, diz a CEO da Imunotera.

Raposo, que começou na primeira ponta, hoje se ocupa basicamente da segunda. Em 2020, concluiu um MBA em Gestão da Inovação em Saúde. “Eu brinco que tive de tirar o jaleco e vestir o terninho”. Segundo a pesquisadora, para empreender em ciência, é preciso conseguir transitar entre esses dois mundos.

“Se a pessoa já tiver uma pesquisa em andamento, é fundamental que ela entenda bem o mercado e quais seriam os potenciais clientes do seu produto”, diz. Para tanto, ela recomenda que esse profissional busque participar de cursos e disciplinas de empreendedorismo hoje existentes nas faculdades. No caso de a startup já estar criada, Raposo indica os programas de aceleração e as incubadoras. 

A Imunotera está incubada na Eretz.bio, no programa voltado a startups de biotecnologia do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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