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04.08.2025 Formação

“Minha vida vale mais do que vinte papers”

Doutorando conta como enfrentou preconceitos na universidade e de que maneira planeja sua carreira científica sem renunciar a projetos de extensão

“Vejo meus amigos competindo para ver quem publica mais artigos em periódicos consagrados. Embora exista essa pressão, assumi que não é essa a formação que quero”, diz Jackson Monteiro, doutorando da Unifesp | Imagem: Shutterstock “Vejo meus amigos competindo para ver quem publica mais artigos em periódicos consagrados. Embora exista essa pressão, assumi que não é essa a formação que quero”, diz Jackson Monteiro, doutorando da Unifesp | Imagem: Shutterstock

O químico Jackson Monteiro, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biologia Química da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), se mantém em constante alerta para não se submeter à sobrecarga de trabalho e ao adoecimento mental enquanto faz sua pesquisa sobre a atividade antimicrobiana de moléculas e fungos encontrados em árvores da espécie Duguetia lanceolata.

Nascido na periferia da cidade de São Paulo, em uma família que sempre valorizou os estudos, o pós-graduando frequentou escolas públicas e fez graduação em uma faculdade particular.

A partir do incentivo de professores que reconheceram seu potencial, decidiu se dedicar à carreira acadêmica para se tornar professor universitário

“Sempre gostei da ideia de compartilhar conhecimento, e estava vendo na minha frente a oportunidade de continuar aprendendo, podendo compartilhar isso com outras pessoas”, comenta Monteiro.

O caminho não foi fácil: como não tinha uma boa base em algumas disciplinas, assistiu a algumas aulas em turmas da graduação, a fim de absorver o conhecimento necessário e passar na seleção do mestrado, concluído em 2021.

“Minhas notas não eram ruins na graduação, mas quando cheguei na universidade pública e vi que ‘o negócio era muito mais embaixo’, fiquei desesperado”, recorda. “Logo começou a bater aquela insegurança: estou aqui, mas não tenho condição de estar, não estou nada preparado.”

Sensação de não fazer parte da comunidade acadêmica

Depois de aprovado, Monteiro enfrentou outro desafio: a sensação de não pertencimento. A universidade, diz ele, não é um lugar preparado para receber pessoas da periferia, pois elas não conhecem o funcionamento daquele sistema. 

“Para fazer parte daquilo e conseguir ocupar aquele espaço, comecei a mudar o jeito que eu falava, me vestia, me comportava”, conta Monteiro, completando que também mudou lugares que frequentava, em busca de repertório para conversar com colegas da pós-graduação.

“Enquanto seus pares conhecem a Europa e já enjoaram de ir à Disney, você mal saiu de São Paulo – o que você conversa com essas pessoas?”

Recém-chegado à universidade pública, o pós-graduando sentia distanciamento tanto de colegas quanto de professores, pois olhava ao redor e não encontrava pessoas com os mesmos valores e visão de mundo.  

Chegou a ter sua formação questionada por ter vindo de uma faculdade privada: Monteiro conta que ouviu de uma professora, em sala de aula, que, agora que estava em uma universidade pública reconhecida, poderia “limpar” seu currículo.

Como se os desafios inerentes da pós-graduação não fossem suficientes, as relações do ambiente acadêmico acabaram se tornando uma dificuldade a mais no caminho. Ainda assim, Monteiro conseguiu se adaptar, encontrou e ocupou seu espaço como pesquisador, finalizou o mestrado e ingressou no doutorado.

Para Jackson Monteiro, doutorando em biologia química da Unifesp, projetos de extensão podem ser tão relevantes para a sociedade quanto a publicação de artigos em revistas de alto impacto| Imagem: Arquivo Pessoal
Para Jackson Monteiro, doutorando em biologia química da Unifesp, projetos de extensão podem ser tão relevantes para a sociedade quanto a publicação de artigos em revistas de alto impacto | Imagem: Arquivo Pessoal

Envolvimento com a política universitária

Durante sua trajetória, o jovem pesquisador percebeu, diversas vezes, a necessidade de questionar, debater e mudar algumas coisas. Com o processo eleitoral para a escolha de representantes discentes para os colegiados, viu uma oportunidade de se envolver na política institucional da universidade.

Foi eleito pelos colegas como representante para a Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Unifesp. Monteiro, então, passou a entender melhor a estrutura da universidade e, no ano seguinte, com mais experiência, tornou-se representante discente junto à coordenação do seu programa de pós-graduação.

Uma de suas principais ações foi reorganizar a distribuição das verbas do programa de apoio à pós-graduação, que oferece auxílio financeiro para que os pesquisadores possam participar de eventos científicos. 

Monteiro ressalta a importância de estar envolvido nas discussões administrativas. “Quem estava lá antes de mim, não estava preocupado com verba de apoio. Se meu representante não se interessa pela verba, pois tem recursos e pode viajar por conta própria, eu me interesso.”

Com sua atuação em defesa dos interesses dos pós-graduandos, Monteiro ganhou mais espaço e notoriedade entre seus colegas e professores, facilitando a comunicação entre discentes e docentes, e tornando o ambiente menos hostil.

Além da pesquisa e representação discente, o doutorando também participou do Cursinho Pré-Vestibular Jeannine Aboulafia (CUJA), um cursinho gratuito para estudantes de escolas públicas e/ou de baixa renda ofertado pela Unifesp como projeto de extensão. 

Ocupando as funções de professor e diretor pedagógico do CUJA, Monteiro teve a oportunidade de adquirir experiências em várias frentes – entre elas ensino, administração e recursos humanos.

Ao diversificar sua atuação dentro da universidade durante a pós-graduação, o doutorando sofre retaliações: alguns colegas e professores consideram perda de tempo ou falta de responsabilidade com a sua pesquisa, conta Monteiro. 

Ainda assim, ele diz estar seguro de suas escolhas. “Vejo meus amigos competindo para ver quem publica mais artigos em periódicos consagrados. Embora exista essa pressão, assumi que não é essa a formação que quero”, diz. “Não desejo sair daqui só como pesquisador, para mim não basta.”

O doutorando julga que as ações de extensão, que têm impacto direto na comunidade onde a universidade está inserida, são tão relevantes quanto a publicação de artigos.

Monteiro considera estar cumprindo seu dever como cidadão ao compartilhar seu conhecimento com pessoas como ele, para que possam ocupar o mesmo espaço que ele ocupa hoje na universidade.

Ele reconhece que se alguém tivesse feito isso por ele no começo da sua trajetória, certamente ela teria sido muito mais tranquila. 

“O que me mantém fazendo tudo isso, mesmo com a resistência de colegas e professores, é que o currículo é meu e quero construí-lo com autonomia”, diz.

“Minha vida vale mais do que 20 artigos, e o impacto que gero na minha comunidade vale ainda mais do que isso.”

Este conteúdo resulta do trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado por Eduarda Antunes Moreira, sob orientação do professor Ricardo Whiteman Muniz, na especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp). 

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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