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04.09.2023 meio ambiente

Crise e extinção da experiência

Desconexão com a natureza está no cerne das mudanças climáticas e de seus impactos na biodiversidade e na saúde

Imagem: Shutterstock

Desde 2008, a maior parte da população mundial passou a viver em áreas urbanas. Com isso, é esperado que cada vez menos as pessoas sejam expostas a ambientes naturais no seu cotidiano. Menor exposição pode resultar em menor familiaridade com o mundo natural que, por sua vez, pode resultar em maiores níveis de desconexão com a natureza, fenômeno esse conhecido como a “extinção da experiência”.

Além do processo de urbanização, o uso cada vez mais crescente de tecnologias digitais tem influenciado a relação entre seres humanos e natureza, como se essa dicotomia, seres humanos de um lado e natureza de outro, de fato existisse – o que sabemos que não é verdade.

Temos observado um tempo de tela exagerado quer seja nos smartphones ou computadores, relacionado a atividades de trabalho, relacionais ou de entretenimento. Trata-se de um comportamento contemporâneo que permeia todas as idades, até mesmo crianças  bem pequenas, ainda que sociedades médicas recomendem que seu uso deveria ser totalmente restrito para idades inferiores a três anos.  Isso mesmo: zero de tela, mas não é o que temos visto acontecer.

Deixar de gastar mais tempo ao ar livre para estar em frente a uma tela teve início na década de 1950 com a chegada da televisão, seguida da era dos videogames e que culminou com o surgimento da internet e de dispositivos móveis. O Brasil é o quinto país na quantidade de usuários de smartphones, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China, Indonésia e Índia.

Todavia, a questão que se levanta não se relaciona com as tecnologias em si, mas sim no que se refere ao uso que se faz delas e suas consequências sobre a saúde humana e do planeta. Uma das formas que permite avaliar o grau de desconexão está relacionado à presença de elementos naturais em produtos culturais.  

Em alguns países, como no Reino Unido, por exemplo, a partir dos anos 1950 (o que não deve ser uma coincidência) também começou a se observar que cada vez menos a natureza tem sido retratada na literatura, assim como nas canções.

Não temos dados brasileiros sobre isso, entretanto, uma análise sobre o cenário musical atual pode apresentar algumas pistas sobre o que temos ouvido. O Grande Imperador Amarelo na China (2698 a 2598 Antes da Era Comum) ressaltava que a música era um instrumento para fortalecer o caráter e a conduta da população. Não sabemos se essa ideia seria aplicável na atualidade, mas sabemos que a cultura reflete e ao mesmo tempo realimenta os caminhos de uma sociedade.

Se a natureza já se encontra sub-representada em alguns contextos culturais, em detrimento de outros temas, talvez isso implique em menor sensibilização, assim como em comportamentos pró-ambientais menos adequados.

Escritores brasileiros como Manoel de Barros (1916-2014) e Guimarães Rosa (1908-1967), assim como compositores como Tom Jobim (1927-1994), que tanto valorizaram a natureza em seus escritos, já partiram e não sabemos se outros talentos irão se somar a eles nessa temática, embora tenhamos esperanças de que suas obras sempre continuem vivas. 

Alterações no clima e na biodiversidade

A desconexão com a natureza também tem sido relacionada às mudanças climáticas e à biodiversidade, que é o conjunto de todas as espécies de seres vivos existentes. Se por um lado a sociedade pode optar por fortalecer seus laços com a natureza e trabalhar em prol da sua conservação, em um ciclo virtuoso, por outro, um ciclo vicioso também pode ser instalado e intensificado.

Nesse sentido, a desconexão com a natureza está intimamente ligada às mudanças climáticas que impulsionam cada vez mais a perda da biodiversidade e vice-versa.

Ecossistemas saudáveis, ou seja, o conjunto de seres  que vivem juntas em um determinado local e interagem de forma equilibrada entre si e com o meio ambiente,  constituem uma condição essencial para a saúde e o bem-estar humano. O desequilíbrio pode acarretar na falta de disponibilidade e o acesso das pessoas aos alimentos, doenças relacionadas à poluição, novas doenças, aumento de ondas de calor, aumento de secas e outros eventos climáticos extremos, desertificação de regiões (como já vem ocorrendo no Brasil), incremento de refugiados climáticos, dentre outros cenários pouco animadores, com grande impacto principalmente nas populações mais vulneráveis.

Ano após ano temos assistido a desmatamentos e incêndios consumirem extensas áreas naturais no nosso país. Imagens de satélites, aliadas à inteligência artificial, mostram que nos últimos 36 anos perdemos uma área correspondente a uma Inglaterra por ano no Brasil.

O Pantanal tem sido fortemente prejudicado, uma vez que 57% de seu território foi queimado pelo menos uma vez entre 1985 e 2020.

Embora esses dados sejam monitorados há mais de três décadas e sejam disponibilizados publicamente, parcela expressiva da população desconhece quase que totalmente essa realidade.

A desconexão com a natureza, portanto, é prima-irmã do desinteresse que pode afetar grande parte das pessoas sobre o que acontece em regiões mais distantes de onde vivem, ou seja, os ambientes urbanos.

Distâncias e direitos

Em meio ao conflito entre Rússia e Ucrânia, embora vivamos em uma aldeia global, o que foi e continua sendo noticiado por aqui é muito diferente do que se vê em noticiários internacionais da Europa.

O distanciamento físico e, por que não dizer, emocional, reduz a capacidade de empatia e, consequentemente, do envolvimento individual e coletivo em ações mitigadoras em prol da natureza.

Os direitos da natureza são um movimento global crescente desde a promulgação da Constituição Federal do Equador em 2008, e estão alinhados à Constituição Brasileira de 1988, na qual se lê em seu artigo 225: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Ainda assim, estamos longe de assegurar tais direitos de modo amplo. Cinco municípios brasileiros, porém, têm avançado nessa questão ao reformularem suas Leis Orgânicas, sendo eles Bonito e Paudalho (ambos em Pernambuco), Florianópolis (SC), Serro (MG) e Guajará Mirim (RO).  

A partir de exemplos assim, essa é a boa notícia: os seres humanos podem se conectar ou se reconectar à natureza criando mecanismos para isso, pois não é possível deixarmos as mudanças climáticas atingirem índices catastróficos. Existem muitos caminhos para isso.

Os seres humanos se diferenciam de outros mamíferos pela capacidade de pensar, de refletir, de ter consciência sobre sua finitude. Têm também à sua disposição a capacidade de organizar dados, criar soluções e implementá-las.

Se estamos vivendo o que alguns cientistas têm chamado da “era do antropoceno”, caracterizada pelo período em que as atividades humanas começaram a ter impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas, é possível também vislumbrar que, com uma boa dose de conhecimento, divulgação junto à sociedade, tendo ao fundo uma trilha sonora do maestro Tom Jobim, a humanidade possa caminhar para uma luz no final do túnel.

Eliseth Leão é pesquisadora sênior do Hospital Israelita Albert Einstein e líder do Grupo de Pesquisa e-Natureza: estudos interdisciplinares sobre conexão com a natureza, saúde e bem-estar (CNPq).

 

 

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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