
O mundo está preparado para uma próxima pandemia?
Identificar patógenos com potencial pandêmico, estabelecer sistemas globais de vigilância e regionalizar produção e licenciamento de vacinas são ações urgentes para enfrentar uma nova pandemia

Na última semana de julho de 2024, o Rio de Janeiro foi palco da “Cúpula Global de Preparação para Pandemias”, coorganizada pelo Ministério da Saúde do Brasil (como parte de sua Liderança do G20) com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Coalizão para Preparação e Inovação em Epidemias (CEPI), que reuniu mais de 350 especialistas globais de governos e organizações supranacionais, sociedade civil, academia, filantropia e indústria.
A reunião abordou as condições atuais de preparo para o enfrentamento de uma próxima pandemia, os ensinamentos obtidos a partir da pandemia de covid-19, e a viabilidade e progresso da “Missão dos 100 dias”, lançada em 2021 pelo governo do Reino Unido durante a reunião do G7.
O aprendizado mais impactante da última pandemia foi que 1,6 milhão de pessoas morreram antes de as vacinas estarem disponíveis. Os casos com transmissão entre humanos propagaram em escala logarítmica.
Dados de modelagem matemática mostraram que 800 milhões de infecções e oito milhões de mortes na pandemia poderiam ter sido evitadas, se as vacinas estivessem disponíveis no prazo de 100 dias após a disponibilização da sequência genômica do SARS-CoV-2.
Meta ambiciosa, mas possível
A “Missão dos 100 Dias”, que foi endossada pelas nações do G7 e do G20, visa ter uma vacina desenvolvida, testada e seu uso emergencial autorizado dentro desses 100 dias.
Essa é uma meta ambiciosa, considerando que o tempo de desenvolvimento de uma vacina geralmente leva de cinco a dez anos, podendo chegar até mesmo a 25 anos, como no caso da primeira vacina contra a malária. Os 100 dias são alcançáveis?
No caso de um novo coronavírus ou um vírus da gripe pandêmica surgir, provavelmente conseguiremos alcançar o objetivo dos 100 dias, pois já conhecemos bem essas famílias virais.
Entretanto, se um novo surto vier da família viral do paramixovírus ou orthopoxvirus – ou “doença X”, ou seja, um patógeno totalmente novo, o mundo não está pronto.
Isso porque o sucesso da Missão 100 dias é baseado em cinco pilares críticos, que devem ser estabelecidos em um período pré-pandêmico, como destacado a seguir:
1) Criação de bibliotecas de protótipos e plataformas de vacinas:
O sucesso sem precedentes da disponibilidade da vacina contra covid-19 em 326 dias só foi possível graças a pesquisas anteriores sobre outros membros da família do coronavírus, como MERS e SARS-CoV1.
Identificar famílias de patógenos com potencial pandêmico, selecionar um protótipo dentro da família viral e, em seguida, iniciar o trabalho de P&D com seleção de plataforma vacinal será fundamental para um salto inicial no controle de uma próxima pandemia.
Esse conceito também foi adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), afastando-se da lista anterior de uma dúzia de patógenos para uma abordagem de biblioteca de famílias.
2) Estabelecimento de sistemas globais de vigilância:
A detecção precoce de patógenos com potencial pandêmico no ambiente, como no esgoto, antes mesmo de um surto ocorrer, é crítico para evitar a evolução do surto potencial para uma pandemia.
Infelizmente, muitos governos não construíram ou até mesmo reduziram o nível dos seus esforços de vigilância.
Existe também a relutância de alguns países em compartilhar seus dados epidemiológicos e genéticos, por razões geopolíticas e de estigmatização e, principalmente, pela falta de retorno dos países desenvolvidos beneficiários.
Uma colaboração global, com adequada estrutura regulatória para compartilhamento de dados e garantia de fornecimento precoce de vacinas aos países em desenvolvimento, permitindo o acesso equitativo, é uma pedra angular fundamental da preparação para pandemias.
Essa ainda é uma das questões pendentes que estão sendo abordadas no Acordo Global para Pandemias, atualmente em estágio avançado de consulta pelos estados membros da OMS.

3) Consolidação de redes globais de centros de testagem para ensaios clínicos e laboratórios:
Essas estruturas precisam ser estabelecidos e qualificados no período interpandêmico, para garantir resposta imediata em caso de surto.
A falta de centros qualificados para ensaios clínicos, além de laboratórios de imunologia específicos para ensaios clínicos em muitos países em desenvolvimento, foi um dos problemas na última pandemia, agravada pela interrupção completa na logística de insumos.
Iniciativas de preparação de centros com profissionais qualificados para ensaios clínicos, como a financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates, na qual 21 centros de pesquisa na América Latina foram qualificados dentro de quatro meses, servem como exemplo de que essas tarefas são viáveis.
No entanto, os centros, bem como os laboratórios de pesquisa clínica, precisam ser mantidos “aquecidos” fora de uma pandemia, por meio de um fluxo constante de ensaios, para não perder eficiência e pessoal qualificado para garantir prontidão para o enfrentamento de uma pandemia.
4) Regionalização da produção de vacinas:
Esta medida seria uma virada de jogo para o acesso global. Várias iniciativas para estabelecer capacidade de fabricação na África estão em andamento por consórcios de filantropia, e pela indústria privada, como a empresa de RNAm Biontech, que está estabelecendo uma instalação modular em Ruanda.
Novamente, como para os laboratórios e centros de ensaios clínicos, esses novos locais de fabricação precisam ser mantidos aquecidos por meio de um fluxo de trabalho constante.
5) Identificação de marcadores imunológicos de proteção:
Isso seria importante para permitir o licenciamento de vacinas com base em dados de imunogenicidade, em substituição aos ensaios de eficácia, que são mais longos e com maior número de participantes.
Colaboração global, confiança, agilidade, tomada de risco e, acima de tudo, equidade é o que os diferentes atores desse cenário global de preparação para pandemias necessitam abraçar para estarem mais bem-preparados para o próximo desafio.
Uma ameaça a qualquer um de nós é uma ameaça a todos nós. Portanto, o fracasso da “Missão dos 100 dias” não é uma opção.

Sue Ann Costa Clemens é chefe do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena, onde é diretora do Programa de Mestrado em Vacinologia e Desenvolvimento de Medicamentos e professora de Infectologia Pediátrica. Professora titular da cadeira de Saúde Global e Desenvolvimento Clínico na Universidade de Oxford e diretora do Grupo de Vacinas Oxford Latam, professora e coordenadora científica internacional do Instituto Carlos Chagas. Consultora sênior na Fundação Bill e Melinda Gates desde 2012, membro de conselhos científicos em várias instituições; em 2023 foi membro do grupo de experts para o acesso e informação a vacinas da Organização Mundial da Saúde- OMS (TAG-MI4A). Ela contribuiu para o desenvolvimento de mais de 20 vacinas e medicamentos licenciados globalmente ao longo de mais de 25 anos de carreira. Sue Ann foi condecorada pela Rainha Elizabeth II com a Ordem do Império Britânico, CBE, pelos serviços prestados à Saúde Pública; ela é também Comendadora da República Federativa do Brasil nas Ordens do Rio Branco e do Mérito Médico.
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