
Vinte anos da Lei de Inovação: uma boa semente em terreno árido
Apesar de prever um conjunto ousado e moderno de instrumentos legais, medidas ainda não foram suficientes para alterar a capacidade inovativa da economia brasileira

Por essência, a inovação é uma estratégia de sobrevivência da empresa capitalista. Contudo, aprendemos com a farta experiência internacional: se o Estado não auxiliar, essas mesmas empresas vão investir menos do que o socialmente desejável na atividade.
Ou, em bom português, sem tecnologia apoiada com recurso público, o novo Iphone a ser lançado daqui a seis meses vai ser bem decepcionante.
Isso porque, por mais que a empresa precise inovar para manter posição de mercado, as inovações mais contundentes são incertas e custosas. Mas não só por isso. Existem desafios tecnológicos que só o Estado tem condições de enfrentar, pois são muito complexos e difusos.
Em nosso exemplo, não fosse o apoio público, não teríamos telas sensíveis ao toque.
Ainda que a empresa privada seja o locus central do processo inovativo, a intervenção pública é capaz de aumentar tanto a velocidade de introdução de inovações quanto sua intensidade e impacto.
É justamente isso que fazem países como Estados Unidos, China e quase toda a Europa.
Engana-se o leitor em pensar que o famoso Vale do Silício é mais fruto do espírito empreendedor norte-americano do que do massivo apoio público.
Tire as demandas do Departamento de Defesa norte-americano da equação histórica e veja se haveria financiamento para os self-made man que viraram os heróis tecnológicos da atualidade.
Lei de Inovação
Não é que não exista inovação sem apoio público. Há. O problema é sua velocidade e direção. Além disso, a potência da intervenção pública depende, muito, da qualidade do ambiente de negócios. Ou seja, a intervenção pública importa, mas está longe de ser suficiente.
No Brasil, para promover esse apoio público, a sociedade brasileira, principalmente a universidade e o governo, criaram a Lei de Inovação.
Ela foi promulgada em 2 de dezembro de 2004 e tem por objetivo estabelecer “[…] medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional do país”.
Depois de uma série de alterações promovidas por uma nova redação em 2016, essa lei culminou num amplo conjunto de novas possibilidades legais que contrastam com o modelo mental do Direito Administrativo brasileiro, que ainda é baseado numa truncada relação público-privada.
Surge, assim, por exemplo:
- Uma nova relação universidade-empresa;
- Os fundos de endowments (patrimoniais e filantrópicos);
- Os recursos a fundo perdido (subvenção);
- As encomendas tecnológicas;
- A legalidade da negociação da propriedade intelectual;
- A menção explícita ao fracasso em casos de incerteza tecnológica.
Acontece que, como restou evidente ao longo desses últimos vinte anos, a simples previsão legal de um conjunto ousado e moderno de instrumentos não foi suficiente para alterar a capacidade inovativa da economia brasileira.
A taxa de inovação da indústria de transformação, que no período 1998-2000 foi de 31,9%, passou a ser de 34,3% em 2017 (última medição).
Já no índice global de inovação, éramos, em 2009, a 50ª economia mais inovadora, e em 2024 continuamos na mesma posição, mas já chegamos a ser, em 2020, a 62ª!
Um leitor não familiarizado com o difícil ambiente de negócios brasileiro e as demais legislações que regem a relação público-privada poderia dizer que a situação seria bem pior na ausência da Lei. Mas esse não parece ser o caso.
Por óbvio, a Lei de Inovação não alterou o truncado ambiente de negócios brasileiro nem o espírito geral das relações público-privadas no Brasil, expressas num vasto e complexo arcabouço legal mais amplo.
E inovação é basicamente isso: risco e incerteza na relação entre agentes públicos e privados.
Em outas palavras, mesmo na presença de uma legislação perfeita, a taxa de inovação no Brasil não explodiria.
Desafios brasileiros
Em que pese a Lei da Inovação estar alinhada com o zeitgeist das economias mais inovadoras do mundo, ela opera sobre um terreno árido.
No Brasil, é desafiador abrir um pequeno negócio conhecido, um biotério que desenvolve e vende ratos geneticamente modificados, que depende de dezenas de demoradas licenças e variados insumos importados, então, é praticamente impossível.
Se fazer negócios no capitalismo brasileiro é difícil, fazer negócios com risco tecnológico é ainda pior.
Esse ambiente de negócios envolve também a ética e as regras de incentivo e punição presentes na sociedade brasileira, que se amalgamaram em outras legislações bem mais restritas e reconhecidas e, sobre as quais, a solitária Lei de Inovação tem pouco poder de persuasão.
Por isso, seu uso, mesmo após vinte anos, ainda é muito restrito. Evidentemente, a histórica posição periférica brasileira nas cadeias tecnológicas globais não ajuda nesse cenário.
Aqueles que tentam aplicar as possibilidades da Lei de Inovação têm de enfrentar todo um conjunto de preconceitos, dificuldades de diálogo, reversão do ônus da prova e desconhecimento legal que só geram ineficiências e desgastes.
É muito importante lembrar, nesse contexto, que o processo inovativo é temporalmente circunscrito, incerto, assimétrico e interdependente:
- Temporalmente circunscrito, pois o contexto importa, assim como a velocidade de introdução;
- Incerto, pois não se sabe se é possível desenvolver a tecnologia pretendida e nem se ela será aceita pelo mercado;
- Assimétrico, porque, como o conhecimento é cumulativo, um agente tende a conhecer mais do que outro;
- Interdependente, porque demanda a atuação de agentes com lógicas distintas, como, por exemplo, a universidade, que forma gente e que produz conhecimento, e a empresa, que produz bens e serviços.
O problema todo é que criamos um tipo especial de capitalismo no qual o tempo é o da Administração Pública, e não o do mercado. A incerteza é evitada a todo o custo, a assimetria ignorada e a interpendência criminalizada.
Vinte anos depois, constatamos que uma Lei de Inovação é necessária, mas, por si só, insuficiente.
Ou transformamos o ambiente de negócios e todo arcabouço legal que lhe dá suporte, ou as boas intervenções públicas em inovação vão continuar se perdendo no árido terreno em que são plantadas.

André Tortato Rauen é economista, doutor em política científica e tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Escola Superior do Tribunal de Contas da União (TCU). Também é assessor especial da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).
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