
Ciência e espiritualidade podem coexistir?
Estar no topo de rankings acadêmicos não garante bem-estar, o que faz do autocuidado algo importante para a saúde mental de pesquisadores

Em 1971, o físico britânico Stephen Hawking (1942-2018) desenvolveu o teorema sobre a área total do horizonte de um buraco negro, mas somente em 2019 foi possível, por meio de equações, simular sua forma – que parece um “donuts” alaranjado.
Nos anos 2000, Dalai Lama provocou os cientistas para que estudassem os efeitos da felicidade no cérebro humano, pois (de acordo com a psicologia budista) podemos melhorar nossa qualidade de vida pela experiência direta.
O que coloca um cientista e um líder religioso no mesmo texto?
Tanto a ciência quanto a espiritualidade sabem que não acreditar em algo, porque não há provas, é tão dogmático quanto acreditar em algo que ainda não se consegue provar.
Às vezes, é apenas uma questão de tempo.
Foi assim com o buraco negro, com a teoria da evolução das espécies e com a metamorfose da borboleta. Todos são fenômenos da natureza que precisaram de tempo para serem observados e explicados.
A proposta aqui não é confrontar ciência e religião para seguir acreditando em um ou em outro, mas trazer luz e informação a uma discussão que já deveria estar no passado: cientistas e suas crenças espirituais podem coexistir.
É comum cientistas e pesquisadores se colocarem em um espaço à parte (e muitas vezes acima) da sociedade quando o tema é espiritualidade.
Parece incoerente acreditar em Deus e na Segunda Lei da Termodinâmica ao mesmo tempo.
O naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) demorou duas décadas para publicar, em 1859, o livro A origem das Espécies (de 1859) – devido ao seu conflito com suas crenças. Na obra, ele diz, com todas as letras e desenhos, que o Homo sapiens vem do macaco, e não da criação divina.
A vida modernizada não poupou a carreira científica. Pesquisadoras e pesquisadores se colocam em caixas separadas de profissão, ideais pessoais, familiares, orientações políticas e acabam ficando segregados. Isso se reflete na mente, que também sofre com essa ruptura e causa desconexão.
O que nos faz quem somos é a convergência de inúmeros fatores, como classe social, aspiração profissional, desejos pessoais, núcleo familiar e crenças (ou ausência delas).
Negar algum deles é como negar o óbvio: somos influenciados pelo meio e somos inteiros.
Por que espiritualidade agora?
Nos dois últimos anos, a revista Nature publicou dois artigos sobre saúde mental e estresse na área de pesquisa. Em um deles, de 2024, a imagem que abre o texto mostra vários estudantes com seus jalecos, em meio ao laboratório, com rostos preocupados e angustiados, enquanto uma jovem, sentada em posição de lótus, e com um fone de ouvido, sorri numa roupa rosa.
Ela parece estar à parte de toda a confusão. Mas, como ninguém quer estar à parte, compramos a ideia de uma superprodutividade, que não está funcionando nem na Faria Lima, nem nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos.
Cuidar da saúde mental é importante para o ser humano, cientista ou não.
Ter rotinas de autocuidado não é mais perda de tempo, e se obrigar a estar no topo dos rankings de prestígio acadêmico pode ser muito danoso para seu bem-estar físico e mental.
A provocação de Dalai Lama é válida: estudar os efeitos da felicidade no cérebro humano é importante para entender as formações mentais e suas consequências em nosso comportamento.
O motivo pelo qual estamos com uma enxurrada de diagnósticos de depressão, ansiedade e TDAH se deve aos efeitos adversos de uma sociedade sem autocuidado e com muita competição (e comparação).
Os rankings universitários levam em conta a quantidade de alunos, artigos científicos, horas de aulas ministradas, bem como em quantos congressos você foi e quantos você organizou. Você virou um número para as agências de fomento e está fazendo o mesmo com seus estudantes?
Falando em números: como você está cuidando dos quase 90 bilhões de neurônios no seu cérebro? Será que é só aí que se iniciam os pensamentos? Como é sua reação emocional frente a uma falha?
Do total de células cerebrais, 70% estão no cerebelo, e estímulos motores, como atividade física e novas habilidades motoras, são essenciais para seu bom funcionamento.
Será que não seria a hora de aprender a pintar, entre uma aula de estatística e outra? Bem, é isso que a Escola de Pesquisa Max Planck para Sistemas Inteligentes tem feito. Na mesma linha, a Universidade de Zurich e o Imperial College têm cursos sobre saúde mental.
Ou seja, precisamos falar sobre isso.
Em que momento entre publicar um trabalho científico e fazer um experimento, olhamos para dentro e nos perguntamos: Como esse resultado pode impactar a vida das pessoas? Quanto o que faço me traz satisfação? Ou: como estou permitindo que minha vida seja impactada por tudo isso?

Efeitos no cérebro
Assim como a Ciência sempre precisou da arte, as pessoas precisam de algo além das suas profissões. Cultivar um hobby para cuidar de si é tão importante quanto a questão espiritual, mas, devido às características profissionais de cientistas, parece que ser cético é o que vale.
Claro que não se deve cair no conto de qualquer “mindfulness-coaching” que existe por aí (sim, há vários). Porém, não há problema algum em dedicar tempo para aprender a meditar, praticar yoga ou cuidar da espiritualidade, se assim você desejar.
A diferença entre essas três práticas e uma aula de pilates na academia é que você precisa dedicar um tempo sozinho para elas.
Claro que você buscará uma boa instrução de yoga, mas é uma prática em que seus princípios de não-violência e fazer o que é correto valem para além dos tapetinhos – algo que você tem que colocar em prática no dia a dia.
Não deixa de ser uma prática espiritual ou transcendental, e qual o problema? Você seguirá sendo um bom profissional da ciência (ou até melhor), pois estará aberto para o desconhecido. Assim como a Ciência!
Nutrir algo que é seu tem um significado e um efeito no cérebro (e mente) que são parcialmente contabilizados. Uma revisão da literatura de 2020 verificou os efeitos da meditação e do exercício mente-corpo (yoga, qi-gong e tai chi) no fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF, na sigla em inglês). A conclusão é que o BDNF ou se manteve ou aumentou após as práticas.
Esse fator é essencial para neuroplasticidade e readaptação, sendo um excelente marcador para doenças psiquiátricas. A porção que não conseguimos contabilizar é a do bem-estar.
Temos alguns marcadores que indicam bem-estar: serotonina, endorfinas; mas não conseguimos contabilizar a satisfação e um sorriso quando alguém pega algo que deixamos cair na rua ou um “por favor” honesto.
Provavelmente foi por isso que Dalai Lama pediu para cientistas medirem os efeitos do bem-estar no nosso cérebro, afinal podemos sentir as sensações internas durante a prática, mas os demais marcadores só a Ciência poderá mostrar.
Talvez seja um momento propício para atrair a espiritualidade para nossa prática de autocuidado e bem-estar, em especial como profissionais da Ciência.
Com menos tabus, e mais pensamento científico!
Sylvia Maria Affonso da Silva é bióloga, especialista em Ciências Ambientais e Fisiologia do Exercício, mestre em Psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), doutoranda em Inovação Social e meditadora desde 2004. Responsável pelo perfil no Instagram @autocuidado_comciencia, coordena o evento de divulgação científica Pint of Science em Ubatuba (SP).
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