
O que esperar dos médicos que formamos?
Em plena transformação, ensino médico deve integrar desfechos em saúde, segurança do paciente e responsabilidade social

Formar médicos para atuação em sistemas de saúde é como preparar uma orquestra. Por muito tempo, o ensino médico funcionou como músicos tocando notas isoladas: cada disciplina e seus conteúdos eram ensinados de forma fragmentada, como se o acúmulo de sons soltos fosse suficiente para criar música.
Contudo, é preciso uma partitura que organize o conjunto, dando sentido e direção à harmonia que se deseja produzir.
Para isso, uma mudança de paradigma na educação médica nos convida a superar a lógica da soma de conteúdos e definir, com maior clareza, o que educadores e sociedade esperam dos médicos que formamos.
Trata-se do paradigma da educação médica baseada em competências, que busca integrar conhecimentos, habilidades e atitudes para o exercício de uma prática profissional confiável, capaz de gerar cuidado seguro, responsável e socialmente comprometido.
Antes do relatório Flexner, publicado em 1910, a educação médica era marcada por um aprendizado oportunístico, dependente de circunstâncias e da disponibilidade de mestres, com pouca padronização entre escolas.
A formação era fragmentada, variando enormemente entre instituições e sem garantias de qualidade estabelecidas. O relatório Flexner trouxe a revolução científica que o século XX exigia: padronização curricular, laboratórios, pesquisa, rigor metodológico. Foi um marco decisivo, que consolidou a medicina como profissão científica.
Entretanto, o modelo flexneriano também cristalizou um ensino centrado em conteúdos e fragmentado em disciplinas. Os estudantes acumulavam informações, mas nem sempre eram preparados para aplicá-las de modo integrado em situações complexas de cuidado.
A educação médica passou, assim, a reproduzir uma formação de excelência em ciência, mas limitada em sua conexão com a prática profissional e com as demandas sociais.
Mudança de paradigma
A transição que hoje se desenha foi construída com base nas mudanças da percepção do ensino médico e das necessidades da sociedade. Uma das primeiras sinalizações dessa transição foi dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1978, em documento que apresentava um modelo de currículo baseado em competências.
Outro marco importante foi o relatório “To Err Is Human”, publicado em 1999 pelo Institute of Medicine dos Estados Unidos, que expôs a dimensão dos erros evitáveis na atenção à saúde. Ele trouxe à tona a necessidade de formação que fosse além de transmitir conhecimentos: era preciso educar para a segurança do paciente, com responsabilidade social e para a atuação em sistemas de saúde complexos.
Esse movimento impulsionou a virada da educação médica para o ensino baseado em competências.
Nesse modelo, as competências são atributos individuais que os profissionais devem demonstrar de forma integrada, incluindo não apenas o conhecimento técnico, mas também atitudes e habilidades relacionais, como profissionalismo, comunicação clínica e colaboração em equipe.
As competências, entretanto, eram conceitos abstratos.
Foi nesse cenário que, em 2005, foram propostas as Atividades Profissionais Confiáveis (EPA, na sigla em inglês), representando unidades concretas da prática médica, observáveis e delimitadas no tempo, que permitem que supervisores decidam se um aprendiz pode realizá-las com maior ou menor autonomia.
Competências são a forma singular como cada indivíduo domina seu instrumento, enquanto as EPAs são a música tornada audível, aquilo que pode ser observado, confiado e avaliado no encontro com a prática real.
Essa integração torna tangível o que antes parecia distante: avaliar competências no campo real de atuação.
Impacto no cuidado
Migrar para um ensino orientado por competências e EPAs não é apenas mudar um currículo. É uma transformação cultural no modo como se produz o cuidado médico.
A educação, quando alicerçada em desfechos da prática, amplia a segurança em quatro dimensões principais:
- Para o paciente, reduz erros evitáveis e aumenta a confiança no atendimento.
- Para a pessoa em formação, garante progressão supervisionada, diminuindo os riscos de uma autonomia precoce e insegura.
- Para o profissional, fortalece a confiança e o preparo diante da complexidade crescente dos sistemas de saúde.
- E para a sociedade, responde formando médicos alinhados às necessidades reais do sistema de saúde.
No Brasil, um exemplo de alinhamento com esta transição acontece no Einstein Hospital Israelita, onde a graduação em medicina incorpora as EPAs como referência avaliativa durante o internato e, na residência médica, já se faz um uso amplo das EPAs para acompanhar a progressão dos residentes. Já na formação continuada, os programas de treinamento são planejados baseando-se em competências.
Também no contexto da formação continuada, em algumas áreas de atuação médica na instituição, como nas Unidades de Terapia Intensiva e na Atenção Primária à Saúde, as EPAs estão sendo propostas como ferramenta de suporte para elaborar planos de desenvolvimento individualizados de profissionais que atuam na instituição.
Com isso, busca-se um acompanhamento estruturado ao longo da carreira, sendo essa uma proposta inovadora no contexto nacional e internacional.
Medicina de Família e Comunidade
Em 2025, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) publicou as EPAs Nacionais em Medicina de Família e Comunidade, um marco que delineia de forma clara as atividades esperadas de um especialista da área.
Para apoiar sua implementação nos programas de residência médica, a SBMFC lançou um Guia Teórico-Prático que reúne métodos avaliativos e oferece diretrizes para sua aplicação no contexto do treinamento em serviço.
Se o paradigma da educação médica baseada em competências é a partitura que orienta a sinfonia, a avaliação é o ensaio que permite afinar instrumentos, corrigir compassos e produzir harmonia. Afinal, não existe formação robusta sem sistemas avaliativos coerentes.
Segundo os critérios de Ottawa, consenso de especialistas aceito internacionalmente, uma boa avaliação é aquela que apresenta validade, confiabilidade, viabilidade, efeito educacional, efeito catalítico e aceitabilidade.
Assim, avaliar não é apenas medir desempenho: é cuidar do aprendizado, orientar trajetórias e decidir com responsabilidade sobre a autonomia de estudantes e residentes em cada etapa de sua formação.
Mudança cultural
A transição do ensino focado em conteúdos para a educação médica baseada em competências precisa estar alinhada com as necessidades de cada país e cultura, não sendo suficiente copiar modelos externos.
O Brasil tem produzido soluções próprias, como as iniciativas de sociedades de especialidades médicas e experiências exitosas, que ilustram que é possível transformar propostas conceituais em ações e ferramentas concretas.
O desafio agora é expandir essas práticas nacionalmente, consolidando uma educação médica alinhada com decisões seguras e legitimadas sobre a autonomia profissional dos médicos em formação.
Essa mudança não é apenas pedagógica, mas cultural: trata-se de orientar a formação médica para responder às demandas dos sistemas de saúde, promovendo cuidado mais seguro e comprometido com as necessidades da sociedade.
Mais do que ensinar notas soltas de conhecimento, formar médicos é construir uma sinfonia em que prática profissional, conhecimentos, atitudes e habilidades clínicas e relacionais se integram em harmonia para gerar um cuidado qualificado. Com a transição para um ensino baseado em competências e desfechos, podemos afinar os instrumentos e produzir uma música que ressoe na segurança dos pacientes e na responsabilidade e compromisso das escolas e instituições médicas com a sociedade.
Leonardo de Andrade Rodrigues Brito é médico de Família e Comunidade. Mestre e doutorando no programa de Clínica Médica na área de concentração em Ensino em Saúde na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente atua como preceptor acadêmico da Residência de Medicina de Família e Comunidade e coordenador da pós-graduação de Docência e Preceptoria em Medicina no Einstein Hospital Israelita e atua como assistente de Ensino e Pesquisa na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Einstein Hospital Israelita
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