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12.09.2024 Memória

Por que estudar história da ciência?

Área ajuda a entender que o conhecimento é produzido por pessoas reais, que acertam e que falham

Estátua do físico Isaac Newton (1643-1727), obra do escultor escocês Eduardo Paolozzi (1924-2005), exposta na Biblioteca Britânica, em Londres | Imagem: Shutterstock

A cada instante, a ciência constrói seu caminho em direção ao futuro, deixando como legado (bom ou ruim) um notável passado. Por vezes, nos jornais, nas revistas, nos livros, nos programas e produtos audiovisuais ou até mesmo nos ensaios desta plataforma, somos apresentados a alguns vislumbres desse passado.

Pode ser pelo nome de algum ou de alguma cientista, de um feito importante, de um episódio marcante. Ele (o passado) está lá, como uma bela fotografia a ser vista, como um registro do que foram os cientistas e do que fizeram à sociedade.

Entretanto, uma fotografia nada mais é do que uma fonte estática. Para entendermos quem são as pessoas lá retratadas, o lugar e o contexto precisamos de uma investigação mais profunda. No caso da ciência, essa investigação é feita por aqueles que costumamos chamar de “historiadores da ciência”.

Sim, existem pessoas que se dedicam exclusivamente a entender o passado da ciência e dos cientistas, a esmiuçar essas fotografias. São profissionais geralmente oriundos das áreas científicas, que se convertem às Humanidades, ou historiadores de formação interessados em temas da Ciência.

Compreendem também muitas pessoas sérias de vários campos, dedicadas a apresentar uma visão mais adequada da Ciência, dos cientistas e do desenvolvimento do conhecimento científico. Bons historiadores da ciência não são quaisquer aventureiros de redes sociais.

A História da Ciência é uma área de pesquisa consolidada, que deu seus primeiros passos no início do século XX, especialmente nos Estados Unidos, onde foram criados, na época, os primeiros periódicos, posições em universidades e sociedades especializadas.

Hoje, aglutina muitos pesquisadores, com perspectivas e influências das mais diversas. No Brasil, reúnem-se, por exemplo, na Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e na Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC), que também congrega outros colegas latino-americanos.

Mas, por que estudar a História da Ciência? Que ganhos ela traz para o nosso presente? E para o futuro?

Citarei dois exemplos, que talvez possam até balançar a visão de senso comum dos leitores sobre a ciência e o trabalho científico.

O primeiro deles é o do britânico Isaac Newton (1643-1727). Conhecido por suas leis da Física, Newton é geralmente associado ao conceito de “gênio” da ciência. No entanto, desde os anos 1940 e 1950, suas realizações têm sido mais detalhadamente contextualizadas por historiadores da ciência.

Newton deixou de ser o imaculado físico e matemático, passando a ganhar contornos mais profundos, especialmente pela influência dos (muitos) estudos que realizou em Alquimia e Religião.

Isso se deu, em grande parte, porque em 1936 foi realizado um leilão em Londres, no Reino Unido, onde vários dos escritos do britânico foram vendidos. Papéis soltos que hoje certamente alguém descartaria, mas que ainda estavam guardados nas residências de seus herdeiros (Newton não teve filhos, sendo todos os seus herdeiros descendentes de sua sobrinha, Catherine Barton).

Os papeis foram comprados majoritariamente por duas pessoas: o economista John Maynard Keynes (1883-1946) e o colecionador Abraham Yahuda (1877-1951). O destino que cada um deu aos lotes que adquiriram foi diverso, mas, de modo geral, os escritos revelaram um Newton diferente daquele conhecido.

No lugar do físico, do astrônomo e do matemático rigoroso, foi encontrado um pensador ávido por entender alquimia e por se adentrar nos meandros do pensamento sobre o divino.

Com isso em mãos, historiadores da ciência têm indicado que esses conhecimentos influenciaram sobremaneira o pensamento de Newton sobre sua própria mecânica, astronomia e óptica. Ou seja, não houve uma separação entre o “Newton físico” e o “Newton alquimista”, e nem poderia haver, uma vez que se tratou de uma só pessoa.

Ciência brasileira

O segundo exemplo envolve a ciência nacional. Há ainda uma visão estereotipada de que a ciência brasileira sempre foi atrasada, de que nada se fez no país até pouco tempo atrás, de que as grandes políticas públicas pertencem aos tempos correntes.

Em parte, isso pode até ser verdade. Mas o que historiadores da ciência têm apontado mais recentemente é que, assim como no exemplo anterior, temos um cenário mais complexo.

Artigos, livros, teses de doutorado e dissertações de mestrado têm mostrado, por exemplo, que muitas iniciativas para o desenvolvimento científico no Brasil foram colapsadas por decisões políticas equivocadas, pela ascensão de movimentos repressivos como a ditadura militar (1964-1985) e pela própria falta de recursos humanos preparados para tocar uma ciência nacional.

Por outro lado, iniciativas vindouras, como a criação, em 1951, do que viria a ser o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ou de sociedades científicas como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948, foram fundamentais para a consolidação da pesquisa no país.

Estudos também têm apontado para o intricado intercâmbio científico entre brasileiros e estrangeiros, muitos destes responsáveis pelo surgimento dos principais polos de pesquisa nacionais (não citarei nomes específicos para não cometer injustiças ao esquecer de alguém).

Deve-se também mencionar o papel das mulheres nesse processo, tão injustamente invisibilizadas, como Elisa Frôta-Pessoa (1921-2018), Neusa Amato (1926-2015), Amélia Imperio Hamburger (1932-2011) e Sonja Ashauer (1923-1948). Faço questão de mencionar aquelas cuja trajetória eu mais conheço, mesmo sabendo que esquecerei de alguém importante.

Embora tenha abordado mais o contexto da física brasileira, minha área original de formação, não faltam exemplos de trabalhos em História da Ciência ressaltando a contribuição de biólogos e biólogas, químicos e químicas, geógrafos e geógrafas, matemáticos e matemáticas para o desenvolvimento da ciência nacional.

O fato é: nunca se estudou tanto a história da ciência no Brasil como hoje. Sendo assim, voltando à pergunta do começo, qual é a contribuição da História da Ciência para o nosso presente e futuro?

A História da Ciência nos ajuda a entender que o conhecimento científico é produzido por pessoas reais, que têm expectativas, ideologias, que acertam e que falham.

Não podemos pensar em um método científico universal, pois a Ciência é multifacetada. Tampouco podemos imaginar que a Ciência é neutra. Não é, jamais foi e nunca será, pois é produto humano e, por isso, está conectada aos nossos desejos, angústias e conceitos.

Dessa maneira, olhar para o passado nos ajuda a entender por que estamos onde estamos hoje e quais erros não podemos mais cometer.

Por exemplo, delegar a competência de pensar a educação científica a um negacionista da ciência certamente não será uma boa ideia, pois suas decisões jamais serão puramente “técnicas”.

Da mesma forma, a História da Ciência nos indica que não investir no aprimoramento técnico e científico da população é um erro decisivo na consolidação de nossa hegemonia política, econômica e cultural. Não faltam exemplos na trajetória de nosso país.

Igualmente contribui para entendermos nosso cenário atual e melhorarmos nossas escolhas, aperfeiçoar nosso senso crítico.

Portanto, é fundamental que todos aqueles envolvidos com a ciência conheçam um pouco de sua história. Uma foto do passado pode ganhar nuances nunca previstos. Quanto mais abrirmos nossos horizontes, melhores seres humanos nos tornaremos. Os historiadores da ciência podem nos ajudar nessa tarefa.

Breno Arsioli Moura é professor do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na área de História. Atualmente, é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ensino e História das Ciências e da Matemática (PEHCM) da UFABC.

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Hospital Israelita Albert Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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