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12.11.2024 Big Data

A importância de políticas de saúde baseadas em ciência de dados

Apesar da infinidade de dados sobre o sistema público de saúde, grande parte é pouco utilizada por governos para elaborar e aprimorar políticas públicas

A ciência e a tecnologia da informação do século XXI nos oferecem uma série de oportunidades, e o custo que estamos pagando por não aproveitá-las é muito alto | Imagem: Shutterstock

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) produz uma quantidade enorme de dados a partir de coletas diárias nos diversos tipos de serviços públicos de saúde. Há sistemas de informação oficiais específicos para coletar, armazenar e agregar dados sobre nascimentos (SINASC) e mortes (SIM), utilizados em todos os serviços de saúde do país, incluindo os privados.

Há outros que buscam acompanhar o que ocorre nesse intercurso, como a busca por consultas com profissionais de saúde em nível ambulatorial (SIA) e hospitalar (SIH), e o de notificação de doenças e agravos de interesse (SINAN), entre outros.

Infelizmente, a grande maioria desses dados é pouco utilizada pelos governos federal, estaduais e municipais para a elaboração de políticas públicas.

E, quando utilizados, baseiam-se normalmente em longos e rígidos relatórios impressos (ou em PDF) com estatísticas descritivas básicas, utilizando ferramentas do século XX.

Salvo raríssimas e honrosas exceções, por exemplo, motivadas pela recente pandemia de covid-19, no que diz respeito à operação diária do sistema, os dados disponíveis em tempo real são praticamente ignorados.

O SUS é uma grande conquista e um patrimônio do povo brasileiro, mas temos um sistema que opera na inércia, com desperdício e onde muito pouca inovação é incentivada.

Indicadores acessíveis

Imaginem se fosse possível criar um dashboard interativo que apresentasse dados sobre o fluxo de pacientes entre municípios, identificando regiões de saúde que não estão conseguindo atender adequadamente a população de sua região.

E se esse dashboard pudesse indicar os itinerários terapêuticos de pacientes em busca de atendimentos de saúde para diferentes especialidades médicas e de outros profissionais, além de ser utilizado todos os anos (ou meses?) para definir o orçamento para a área de saúde para o próximo período?

Ou então, se tivéssemos um outro dashboard mostrando a distribuição geográfica das doenças que levam a internações hospitalares numa grande cidade como São Paulo ou no estado do Rio de Janeiro?

Com isso, seria possível analisar, por exemplo, o deslocamento exigido dos pacientes desde sua residência até o local de internação e ver como essa distância varia de acordo com a especialidade médica, e como essa realidade difere nos vários municípios e estados brasileiros. Todo o planejamento do investimento em novas infraestruturas de saúde poderia ser balizado por esse tipo de informação.

E se tivéssemos algoritmos de aprendizado de máquina capazes de prever surtos de dengue com um, dois, ou três meses de antecedência, de forma que as campanhas de informação e de combate ao Aedes aegypti pudessem começar mais cedo e o atendimento de saúde pudesse se preparar melhor para atender a população?

E se tivéssemos um melhor entendimento da sazonalidade das doenças causadoras de mortalidade em diferentes épocas do ano, seguindo a sazonalidade específica nas várias regiões do país?

E se um sistema emitisse alertas semanais para as secretarias municipais de saúde informando sobre um provável aumento de certas doenças nas semanas seguintes?

Parece um sonho, não?

Mas todas as possibilidades exemplificadas acima têm duas coisas em comum:

  1. Nenhuma delas é utilizada pelo poder público no Brasil e;
  2. Todas são fáceis de implementar, já havendo protótipos funcionais desenvolvidos nos últimos anos com baixíssimo investimento.

Projetos e financiamento

Estou me referindo ao InterSCity, projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que desenvolveu uma série de projetos na área da Saúde no Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP).

Em colaboração com profissionais de saúde e cientistas, alunos e alunas de graduação e mestrado na área de Computação e Ciência de Dados, criaram ferramentas que provam que nada disso é um sonho, basta querer fazer.

Você mesmo pode visitar o site do InterSCity, conhecer projetos na área da saúde e interagir com os dashboards, ler os artigos que descrevem a pesquisa realizada e, caso saiba programar, baixar o código dos sistemas e contribuir para o seu desenvolvimento (todos eles são software livre).

Obviamente, esses sistemas são apenas demonstrações do que pode ser feito e demandariam melhorias para serem utilizados em larga escala. Mas eles já são sistemas funcionais, com dados reais do SUS e que podem já fornecer insights para o poder público.

Se estudantes de computação foram capazes de desenvolver sistemas tão ricos e com potencial tão grande, imagine o que uma equipe profissional bem organizada poderia criar. 

Se o SUS investisse, com inteligência, uma pequena parcela de seu orçamento em inovação tecnológica baseada em Ciência da Computação e Ciência de Dados de alto nível, seria possível criar sistemas de software altamente inovadores, capazes de transformar radicalmente a qualidade da informação disponível aos gestores de saúde pública no país.

A tecnologia da informação (TI) resolveria todos os problemas do SUS?

Claro que não! Há uma série de dificuldades de outras naturezas. Mas esse movimento poderia trazer grandes ganhos, melhorando as políticas públicas e a operação do sistema nos três níveis da federação

Já passou da hora de o Ministério e das Secretarias estaduais e municipais de Saúde do país investirem seriamente em projetos de inovação que utilizem Ciência da Computação e Ciência de Dados de forma moderna.

Isso possibilitaria a construção de ferramentas online interativas e visuais para fornecer informações estratégicas que balizassem o planejamento e a operação do SUS.

Não faz mais sentido focar quase todos os esforços de gestão em tecnologias de décadas atrás.

Mas, então, qual seria a solução? Obviamente, não tenho nenhuma receita mágica. Contudo, ela começaria por reconhecer que é necessário um investimento compatível com o benefício que podemos obter.

Investimento efetivo

Por exemplo, investir, com qualidade, 1% do orçamento de saúde em inovação para gestão baseada em evidências, muito provavelmente traria uma economia bem maior do que 1%.

Isso permitiria investir os recursos já disponíveis de forma mais efetiva, oferecendo um serviço de melhor qualidade pelo mesmo custo atual. Mas o que significa investir com qualidade?

É fundamental que projetos piloto – que possam posteriormente ser replicados para todo o país – sejam conduzidos por equipes capazes, com especialistas das diversas subáreas da Saúde trabalhando em conjunto com Cientistas da Computação, Arquitetos e Engenheiros de Software, Estatísticos, Economistas e Designers.

Portanto, é fundamental a parceria dos governos com universidades, institutos de pesquisa, startups e Organizações da Sociedade Civil.

Todos os sistemas desenvolvidos devem obrigatoriamente ser software livre,construídos a partir de padrões abertos da indústria e baseados nos dados padronizados pelo Ministério da Saúde.

Isso possibilitaria a fácil replicação das soluções para todo o território nacional com baixíssimo custo.

A ciência e a TI do século XXI nos oferecem uma série de oportunidades, e o custo que estamos pagando por não aproveitá-las é muito alto.

A qualidade do serviço de saúde oferecido à nossa população merece mais do que isso.

Fabio Kon é professor titular de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Internet do Futuro para Cidades Inteligentes (InterSCity.org).

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Hospital Israelita Albert Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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