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01.08.2024 Saúde Pública

Transplante de órgãos no Brasil: desafios

Com elevado custo social e financeiro, melhorias no processo doação-transplante é busca constante tanto para a ciência quanto para o sistema de saúde

Com o sucesso dos transplantes refletido em resultados como diminuição da mortalidade e aumento da sobrevivência, houve aumento significativo de pessoas em listas de transplante, e outras ainda sem acesso a esta forma de tratamento | Imagem: Shutterstock

Nos últimos 40 anos, a história da doação e do transplante de órgãos no mundo e no Brasil tem sido marcada por avanços e desafios constantes. Muitos profissionais de saúde se dedicaram, ao longo dos anos, para definir e desenvolver processos assistenciais e gerenciais seguros e eficientes, com o objetivo de prolongar a vida e dar esperança àqueles que tinham como última alternativa de tratamento o transplante.

Mas só há transplante se houver um doador, e esse binômio indivisível constrói a relação denominada processo doação-transplante.  

O marco para que essa terapêutica doação-transplante se transformasse em possibilidade foi realizado por um Comitê ad hoc da Harvard Medical School, nos Estados Unidos, para examinar a definição de morte encefálica, no final dos anos 1960.

Além disso, com o avanço das tecnologias que possibilitaram o desenvolvimento das drogas imunossupressoras nos anos seguintes, bem como as descobertas relacionadas ao sistema imunológico, uma terapêutica ainda em desenvolvimento foi transformada em uma alternativa possível e aceita pela sociedade mundial.

Dessa forma, as pesquisas científicas resultaram em seis prêmios Nobel para 11 pesquisadores e consolidaram esse benefício social, representado pelo avanço moral em nossa sociedade, sobretudo ao aceitar a doação de órgãos em casos de morte encefálica, possibilitando a sobrevivência de muitas pessoas.

A evolução do processo doação-transplante ainda contemplou inúmeros desafios e várias fases, tais como:

Adicionalmente, pesquisadores ainda respondem a diferentes questões éticas. Estudam e aprofundam o entendimento sobre a segurança do paciente, validam instrumentos de qualidade, propõem ferramentas de gestão para melhorar resultados, analisam informações econômicas para demonstrar os custos diretos e indiretos deste processo e mensuram qualidade de vida e adesão às terapias propostas pela equipe multiprofissional.

Também alteram formatos de análise clínico laboratorial ou de imagem à medida que novas evidências direcionam novas condutas médicas, desenvolvem modelos matemáticos de predição de sobrevivência e, assim, promovem alocação dos órgãos baseados nos melhores resultados entre doador e receptor. Além disso, inovam com desenvolvimento de máquinas de perfusão de órgãos e caixas de transporte.

Porém, com o sucesso dos transplantes refletido em seus resultados, como diminuição da mortalidade e aumento da sobrevivência, houve aumento significativo de pessoas em listas de transplante, e outras ainda sem acesso a esta forma de tratamento.

Para garantir o acesso equitativo ao transplante, precisamos desenvolver estratégias capazes de identificar as barreiras que impossibilitam o acesso às listas de transplante, para diminuir ao máximo as iniquidades ainda existentes nessa área.

Este é um desafio sobre o qual a ciência se debruça a cada dia, pois o processo doação-transplante se insere na alta complexidade no sistema de saúde e, portanto, possui elevado custo social e financeiro.

Assim, para promover equidade, precisamos que todos os níveis de atenção e setores de saúde envolvidos encontrem caminhos para que o transplante possa ser uma alternativa sustentável para todos aqueles que necessitam dessa terapia.

Os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro nos possibilitam desenvolver estratégias aliadas com ferramentas como clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular, entre outras.

Ademais, temos clareza dos desafios que nos são impostos na atenção à saúde, sobretudo na atenção primária, como, por exemplo, a epidemia de diabetes, que consequentemente aumenta o número de pacientes com insuficiência renal, levando-os às listas de transplante.

A ciência, portanto, tem como dever prima facie oportunizar melhoria no processo doação-transplante, propondo constantemente ações efetivas para o aumento no número de doadores e acesso equitativo a transplantes de órgãos, tecidos e células.

Frente a esses desafios, pesquisadores exploram a possibilidade da produção artificial de órgãos, do xenotransplante (uso de órgãos de outras espécies) ou da produção por meio do desenvolvimento da medicina regenerativa.

A chamada medicina regenerativa pode ser uma alternativa para diminuir a desigualdade apresentada entre as taxas de transplantes de órgãos e tecidos e o aumento das listas de pessoas que aguardam essa terapêutica. Mas isso ainda representa um caminho em desenvolvimento.

Enquanto alguns pesquisadores correm contra o tempo em busca de alternativas para encontrar possibilidades de aumentar a oferta de órgãos, tecidos e células, outros buscam melhorias no que já está consolidado, construindo processos assistenciais mais eficientes e eficazes.

Entre esses processos está o desenvolvimento de sistemas de qualidade e segurança, com indicadores capazes de mostrar caminhos de melhoria, fórmulas matemáticas de alocação de órgãos ou de avaliação de necessidades e oportunidades, com o objetivo de oferecer mecanismos sustentáveis a essa forma de tratamento às autoridades competentes.

Nesse contexto pela busca de melhorias, na 63ª Assembleia Mundial da Saúde, realizada em 2010 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), foi aprovada a Resolução WHA63.22, com o tema “Biovigilância e seus princípios”, que conta com o seguinte pressuposto:

“…informações apropriadas sobre doação, processamento e transplante de células, tecidos e órgãos humanos, incluindo dados de eventos adversos graves e reações, devem ser comunicados e, posteriormente, analisados pelas autoridades de saúde competentes…”

Dessa forma, precisamos de melhoria de gestão da informação nas atividades de monitoramento, vigilância, avaliação e gerenciamento de riscos em doação-transplante.

Além disso, precisamos construir grupos de indicadores que possibilitem analisar o quantitativo de países que contam com mecanismos de notificação, vigilância e gestão de eventos adversos (informados ao sistema de biovigilância implantado e coordenado pela autoridade competente de cada país). Esse é o compromisso assumido pelos países membros da OMS.

Plano de ação regional

Outra iniciativa nos últimos anos ocorreu em 2017, na 161ª Sessão do Comitê Executivo da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), quando foram estabelecidas estratégias e formulado um plano de ação regional, ao nível das Américas, para o tema da doação e transplante de órgãos, tecidos e células, intitulado “Estratégia e Plano de Ação sobre doação e acesso equitativo a transplante de órgãos, tecidos e células 2019-2030”.

O Brasil é o primeiro país da América Latina e Caribe a implantar seu sistema nacional de biovigilância e contribuir com os organismos internacionais ao iniciar, de forma transparente, o controle das ações em biovigilância, coordenado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, dessa forma, responder a uma das linhas estratégicas.

Por fim, profissionais de saúde, gestores e autoridades de diferentes setores da sociedade devem assumir ativamente o compromisso de combater a comercialização de órgãos no mundo, como demonstrado na última versão da Declaração de Istambul, em 2018.

Adicionalmente a isso, devem considerar a promoção da doação de órgãos, tecidos e células de forma ética, segura e responsável, para garantir o aumento do acesso equitativo e justo, com doação voluntária e gratuita, como preconizado pela OMS. Tal prática asseguraria tratamento adequado a todos aqueles que precisam de um transplante, devolvendo à sociedade o alto investimento público ancorado no SUS, uma política de Estado de sucesso.

Bartira de Aguiar Roza é professora associada da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), líder do grupo de estudos em Doação e Transplante de Órgãos, Tecidos e Células (GEDOTT/CNPq) e professora-colaboradora do Departamento de Inovação, Acesso a Medicamentos e Tecnologia da OPAS/OMS.

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Hospital Israelita Albert Einstein.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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