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09.10.2024 Saúde Mental

Transtorno de personalidade borderline: detecção precoce e tratamentos adequados são fundamentais para abordagem eficaz 

Conhecimento apurado sobre o quadro clínico e os critérios diagnósticos ajuda profissionais de saúde mental a detectar e tratar o transtorno

Evolução do conhecimento sobre o transtorno de personalidade borderline é um dos exemplos de como pesquisa, ensino e assistência podem ser orquestrados de forma a catalisar ganhos para o paciente, diminuir o estigma e aumentar o acesso ao tratamento | Imagem: Shutterstock

Cerca de 0,7% a 2,7% da população, além de seus familiares, lidam diariamente com a profunda dor emocional e as consequências sociais, escolares e laborais negativas do transtorno de personalidade borderline (TPB), o mais estudado e um dos mais graves desta categoria de transtornos mentais

Entre os pacientes que frequentam postos de saúde, ambulatórios de saúde mental e internações psiquiátricas, a prevalência é ainda maior, atingindo 6%, 12% e 22%, respectivamente. 

Apesar desses números, o TPB tradicionalmente permaneceu à margem das grades curriculares dos cursos de medicina e psicologia, o que dificulta a aquisição das habilidades necessárias para o diagnóstico precoce e tratamento adequado por parte dos profissionais de saúde. 

Esse panorama vem mudando nos últimos anos graças a novas pesquisas

Para navegar pelos diversos ambientes sociais, enfrentar os desafios do trabalho e tomar boas decisões, é necessária uma estabilidade do psiquismo que não ocorre no TPB, caraterizado por turbulências intensas das emoções, do pensamento e do comportamento

Em sua apresentação clássica, são observadas, desde os primeiros anos de vida, dificuldades importantes em regular as próprias emoções, que podem ser agravadas por adversidades na infância, como conflitos familiares e bullying

Na adolescência e na idade adulta, há marcada hipersensibilidade à rejeição, irritabilidade e uma dificuldade em desenvolver um senso de identidade estável, uma autoestima resiliente, um controle adequado dos impulsos e uma boa capacidade de reflexão sobre os próprios estados mentais e os dos outros. 

Os pacientes relatam que estressores relativamente corriqueiros, como um olhar de reprovação, a possibilidade do término de um relacionamento ou uma nota baixa em uma prova, são capazes de desencadear emoções negativas intensas, como angústia e raiva; tentativas de suicídio; episódios de autolesão e até dissociação, paranoia e alucinações. 

Além dessa avalanche de sintomas, essas pessoas, que já se sentem extremamente mal consigo mesmas, enfrentam estigma e preconceito — inclusive, infelizmente, de muitos profissionais da saúde. 

Mesmo no século XXI, pacientes ainda ouvem impropérios como “quem tenta suicídio não quer morrer de fato”, “ela está só querendo chamar a atenção”, e “isso é tudo manipulação”. 

Outros transtornos psiquiátricos que ocorrem em taxas semelhantes ao borderline na população são mais estudados e ensinados aos alunos da área de saúde, o que pode ser explicado por alguns fatores. 

Um exemplo clássico é o transtorno bipolar, cujo quadro clínico foi estabelecido de forma mais concordante com as definições atuais desde meados do século XIX, sobre o qual existem pelo menos cinco vezes mais estudos publicados e para o qual os médicos recebem muito mais treinamento. 

O TPB só foi introduzido nas classificações psiquiátricas internacionais a partir de 1980, quando estudos empíricos pioneiros de John Gunderson e os conceitos teóricos de Otto Kernberg possibilitaram um melhor esclarecimento dos seus critérios diagnósticos. 

Além de ter ingressado mais tarde na arena científica, o TPB foi historicamente interpretado de forma negativa e pessoal por profissionais, que tendem a ver sintomas como o descontrole da raiva e as oscilações entre idealização e desvalorização dos outros através de lentes pejorativas, em vez de diagnósticas. 

Em casos extremos, observamos até profissionais bem-intencionados reduzindo o TPB a um conjunto restrito de características vistas como socialmente desagradáveis, devido à desinformação

Não é incomum ouvir em discussões de caso entre colegas sobre certos pacientes que preenchem todos os critérios para TPB: “eu gosto desse paciente, ele não pode ser borderline”. 

Sobre o meio médico, também paira um grande niilismo terapêutico que contamina os pacientes. 

Diferentemente de outros transtornos mentais, como a depressão e a esquizofrenia, as terapias biológicas, como medicamentos e técnicas de neuromodulação, têm ainda eficácia limitada para o transtorno de personalidade borderline. 

Além disso, é prevalente a crença de que a personalidade na idade adulta é imutável. Então, muitos psiquiatras, por receio de gerar desesperança, frequentemente cometem dois equívocos: 

Diagnósticos alternativos, como depressão, ansiedade ou transtorno bipolar, que para esses casos podem ser inadequados ou explicar apenas parte do problema, são muitas vezes os únicos oferecidos aos pacientes – que são frequentemente polimedicados de forma excessiva e encaminhados a psicoterapias ineficazes para esse problema. 

Já no campo da pesquisa, devido ao elevado risco de suicídio e autolesão, e à maior eficácia das psicoterapias em comparação com o tratamento farmacológico, há menos financiamento para o estudo do TPB

Há também críticas quanto à especificidade dos diagnósticos de transtornos de personalidade, que atualmente estão passando por modificações e incluem dois sistemas paralelos de classificação. 

No entanto, sabemos que limitações da acurácia diagnóstica em psiquiatria não são exclusivas desses transtornos e que os sistemas classificatórios, como é próprio da ciência, estão em constante evolução. 

Dado o quão comum é o TPB e o seu grave prejuízo funcional, é fundamental combater o desconhecimento sobre essa condição, que ainda permeia o sistema de saúde, e preparar melhor os profissionais para diagnosticá-la e tratá-la. 

Felizmente, há uma série de novas estratégias baseadas em evidências científicas desenvolvidas para esse fim.

Com o estabelecimento oficial do diagnóstico nos anos 1980, as duas décadas seguintes foram marcadas por uma série de avanços. 

Marsha Linehan desenvolveu a Terapia Comportamental Dialética, cujos ensaios clínicos demonstraram que o TPB, antes tido como intratável, melhorava consideravelmente com esta psicoterapia especializada. 

Em seguida, uma série de outras abordagens também tiveram a sua eficácia comprovada por ensaios clínicos, como é o caso do Tratamento Baseado na Mentalização, da Psicoterapia Focada na Transferência e da Terapia Focada em Esquemas. 

Paralelamente, Mary Zanarini, entre outros pesquisadores, por meio de dois importantes estudos longitudinais, demonstrou empiricamente que, ao longo dos anos, os sintomas da maioria dos pacientes diminuíam gradativamente, a ponto de não atingirem mais o limiar para o diagnóstico. 

Estudos sobre genética, neuroimagem cerebral e alterações endocrinológicas apontam para a existência também de componentes biológicos e inatos do transtorno, não sendo apenas um produto do meio, como se pensava anteriormente. 

Os achados dessas pesquisas, em conjunto, revelam que os pacientes com TPB apresentam uma grande sensibilidade ao estresse, com emoções intensas que não são adequadamente contrabalanceadas por mecanismos hormonais, por um controle eficaz dos impulsos, ou por satisfatórias capacidades de reflexão e tomada de decisão. 

No século XXI, com um melhor prognóstico e psicoterapias eficazes estabelecidas, outras pesquisas demonstraram que fornecer o diagnóstico de TPB e explicá-lo abertamente é, geralmente, bem recebido por pacientes e familiares, contrariamente ao que se supunha. 

E esse processo, chamado de psicoeducação, por si só auxilia na redução de sintomas, demonstrando como o autoconhecimento é impactante. 

Apesar da importância desses avanços, outra barreira ainda precisa ser transposta: garantir que a maioria dos pacientes tenha acesso a um tratamento de qualidade

Gunderson e Paul Links, com o Bom Manejo Clínico (Good Psychiatric Management, GPM, na sigla em inglês) para o TPB, mostraram que um tratamento generalista, bem estruturado e manualizado, pode ser tão eficaz quanto terapias especializadas – que demandam bastante investimento de tempo e recursos financeiros para formação de profissionais e para o acesso dos pacientes. 

Outros tratamentos generalistas desenvolvidos em centros acadêmicos ao redor do mundo, também conseguiram atingir eficácias semelhantes aos tratamentos especializados intensivos.

Ademais, pesquisas demonstraram que os clínicos, após esses treinamentos, relatavam menor estigma e maior confiança ao tratar pacientes com TPB. 

O Brasil também tem participação relevante em inciativas de criação de treinamentos compactos sobre TPB para profissionais de saúde. 

O Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo contribuiu com um projeto internacional, liderado por Lois Choi-Kain, da Universidade de Harvard, e Carla Sharp, da Universidade de Houston, ambas nos Estados Unidos, que adaptou o Bom Manejo Clínico para adolescentes. 

No Brasil, o projeto vem alavancando a capacitação de profissionais que atuam tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto na saúde suplementar para detecção e intervenção precoces do TPB, o que pode mudar a trajetória das pessoas com o transtorno. 

Na última década, esses esforços renderam algo antes impensável: os profissionais de saúde mental têm disputado vagas em centros de treinamento para transtorno de personalidade borderline, um diagnóstico que, antes, muitos clínicos não gostariam que passasse perto de seus consultórios. 

A evolução do conhecimento sobre o TPB é um dos exemplos de como pesquisa, ensino e assistência podem ser orquestrados de forma a catalisar ganhos para o paciente, diminuir o estigma e aumentar o acesso ao tratamento. 

Marcelo Brañas é médico psiquiatra, cocoordenador e cofundador do Ambulatório para o Desenvolvimento dos Relacionamentos e das Emoções (ADRE) do Instituto de Psiquiatria do Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (IPqHCFMUSP) e instrutor oficial de Bom Manejo Clínico para TPB pelo Gunderson Personality Disorders Institute do McLean Hospital da Harvard Medical School (EUA).

Os artigos opinativos não refletem necessariamente a visão do Science Arena e do Hospital Israelita Albert Einstein

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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