Sobre
#Entrevistas

A ciência como braço da política externa

Amâncio Jorge de Oliveira, da USP, fala dos desafios da diplomacia científica brasileira

Amâncio de Oliveira: “Establishing dialogue among scientists and diplomats is quite difficult, so we need to find a common language” | Credit: Personal Archive

Mais do que subsidiar processos de tomada de decisão, a ciência pode ser usada como instrumento de cooperação internacional. Nos últimos anos, a chamada diplomacia científica ganhou relevância por meio de iniciativas que buscam efetivar colaborações entre países. Um exemplo são os consórcios entre países para o desenvolvimento de vacinas, como observado durante a pandemia de Covid-19. O fato é que o conceito de diplomacia científica é bem amplo. Também inclui o apoio de cientistas em negociações diplomáticas e a consolidação de acordos de cooperação científica envolvendo países com relação abalada. 

“Pesquisadores que conseguem explicar questões técnicas de maneira acessível são capazes de dialogar com diplomatas e auxiliar governos em tratados internacionais sobre temas como mudanças climáticas, insegurança alimentar e desigualdade no acesso à saúde”, observa Amâncio Jorge de Oliveira, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador-executivo da Escola de Diplomacia Científica e da Inovação (InnScid-SP), uma das primeiras escolas do mundo exclusivamente dedicada ao assunto. 

Graduado em medicina e em ciências sociais pela USP, Oliveira fez doutorado em política externa na mesma instituição, com uma tese sobre o Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca). Nos últimos tempos, tem se destacado como estudioso da diplomacia científica. Na entrevista a seguir, ele fala sobre o papel dos cientistas nas relações internacionais e como o Brasil pode se destacar nessa área. 

Quais são as principais atribuições da diplomacia científica?

Amâncio de Oliveira – Há diversas atribuições, mas destaco três que considero as mais importantes. A primeira diz respeito à capacidade de a ciência subsidiar a atividade diplomática. Em um acordo sobre a questão do meio ambiente, por exemplo, os diplomatas devem se basear em conhecimento científico – e, por isso, geralmente são assessorados por cientistas. Outra atribuição é utilizar a diplomacia para fortalecer a própria ciência. Isso ocorre quando diplomatas estabelecem conexões entre instituições de pesquisa ou ajudam a estabelecer acordos de colaboração científica, como o desenvolvimento de vacinas contra Covid-19. A terceira atribuição acontece quando a diplomacia convencional não é suficiente. Por exemplo, em situações de conflito entre países, por razões políticas, ideológicas ou econômicas. Mesmo em situações delicadas, é possível fazer com que grupos de pesquisa de nações com relação estremecida estabeleçam colaboração .

Cientistas podem atuar no chamado soft power (poder brando ou poder de influência) ou dar suporte à diplomacia tradicional?

A diplomacia científica é um instrumento de soft power bastante recorrente. No entanto, também pode dar apoio à diplomacia tradicional. Não são situações excludentes. O que muda é como a diplomacia será praticada. Pode acontecer de uma comunidade científica divergir do governo, mas em alguns casos ela pode concordar em alguns pontos e subsidiar ações de soft power. Cabe ressaltar que, em algumas situações, as autoridades podem usar a ciência para agir de má-fé. Por exemplo, aplicando o conhecimento científico em uma guerra química. Nesse caso, o saber científico é deliberadamente usado para violar regras internacionais, subvertendo os princípios diplomáticos.

Diante de obstáculos como mudanças climáticas, avanço de epidemias e insegurança alimentar, como as redes de colaboração científica podem atuar em negociações internacionais?

O fato é que produzir ciência em rede é melhor do que isoladamente. O benefício das redes de colaboração é que, por meio delas, pode-se reunir o que cada grupo de pesquisa tem de melhor, visando produzir conhecimento com qualidade e agilidade. Isso é cada vez mais necessário no enfrentamento dos desafios que você mencionou, além de outros, como a crise ambiental. Sabemos, hoje, que a degradação ambiental em um país como o Brasil pode alterar o clima de outras nações. Isso significa que os grandes problemas da humanidade não podem ser encarados de maneira isolada, apenas do ponto de vista regional. Nesse sentido, é preciso que a diplomacia científica – amparada por grupos de pesquisa que trabalham em rede – ganhe força no mundo, a fim de impulsionar novos acordos internacionais capazes de encontrar soluções para todas essas questões.    

A diplomacia científica pode ser utilizada como instrumento de cooperação internacional?

Por meio da diplomacia científica, é possível compartilhar conhecimento entre países, mas cada um deles precisa saber como aproveitar esse conhecimento de acordo com os problemas locais. Por mais que os desafios sejam globais, existem as particularidades de cada local.  Por isso, não é fácil fazer cooperações. O Brasil é um exemplo dessa complexidade. Nosso país tem um histórico muito positivo de parcerias e cooperações internacionais com países do Norte global. No entanto, ainda há muito o que avançar nas relações com países do Sul global, como Índia e Indonésia, que enfrentam problemas semelhantes aos nossos, dos quais destaco desigualdade social e violência. Para que haja, de fato, uma troca de qualidade, precisamos nos aproximar mais destes países, e isso inclui fazer mais cooperação científica com eles. Ocorre que nem sempre há estrutura legal e protocolos que conduzam essas negociações, além de haver dificuldades como a barreira da língua. 

A comunidade científica global está mais engajada com temas diplomáticos?

O diálogo entre cientistas e diplomatas é muito difícil, devido à falta de entendimento básico entre as duas culturas – a científica e a diplomática. Um precisa entender o mundo do outro, e nem sempre isso é possível, pois são práticas profissionais diferentes, que muitas vezes compartilham valores distintos. Apesar disso, é necessário buscar uma linguagem comum, para que haja comunicação, entendimento. No geral, ainda é difícil ver a comunidade científica tão conectada com os temas diplomáticos, mas há espaço para crescer. Na Escola de Diplomacia Científica e da Inovação [InnScid-SP], já formamos mais de 2 mil alunos interessados em diminuir a distância entre ciência e diplomacia.

Diplomatas podem ajudar a estabelecer acordos de colaboração científica, como o desenvolvimento de vacinas contra Covid-19

Qual a reputação do Brasil na diplomacia científica? 

Em termos gerais, a reputação brasileira na diplomacia científica é boa. O país sempre foi muito competitivo e tem boa formação nesse quesito. É uma situação de confiabilidade alta. Temos instituições de ensino e pesquisa, como a USP e a Universidade Estadual de Campinas [Unicamp], que têm reconhecimento internacional e servem como “cartões de visita” da ciência brasileira. Creio que temos um bom relacionamento com outras organizações científicas pelo mundo.

Nos últimos anos, muitos pesquisadores brasileiros deixaram o país em busca de melhores condições de trabalho em instituições estrangeiras. Essa fuga de cérebros interfere de alguma forma em nossa diplomacia científica? 

A diáspora científica obviamente é um problema. Do ponto de vista da diplomacia, porém, esse fenômeno não impede que pesquisadores que saem do Brasil continuem contribuindo com o país. Muitos seguem colaborando com seus pares que aqui permanecem. Também há o movimento inverso: o Brasil ainda atrai muitos pesquisadores. Temos programas de pesquisa bastante competitivos, especialmente em áreas estratégicas do ponto de vista internacional, como as ciências biomédicas. Nossos estudantes, em geral, são preparados para receber gente de fora. Na USP, por exemplo, todos os alunos de química têm praticamente um segundo idioma. A balança ainda está equilibrada, portanto. 

Como a diplomacia científica se posiciona no atual conflito entre Rússia e Ucrânia? 

São muitas facetas de atuação. De forma imediata, a recepção de pesquisadores ucranianos passou a ser uma política forte, inclusive no Brasil, com bolsas específicas para dar oportunidade a cientistas que conseguem sair da zona de conflito. Além disso, temos visto uma quantidade imensa de russos pedindo abrigo em outros países com vistas a continuar exercendo a profissão. Essa movimentação gera diversidade na ciência, favorecendo a produção de conhecimento. Também há atuação do uso da ciência, por exemplo, para solucionar o impacto gerado pela mudança da matriz energética por conta da exportação de gás na região. A diplomacia tem atuado no sentido de buscar alternativas, e isso passa por consultar especialistas em energia e bioenergia.

E em relação à Amazônia, como a ciência brasileira pode se posicionar do ponto de vista diplomático?

A ciência  ambiental é muito forte no Brasil, mas o país se encontra em um momento difícil de reputação internacional. O esforço, agora, deve ser no sentido de comunicar internacionalmente o que está acontecendo, para que não haja alterações de narrativas. Então temos que parametrizar para não dar a impressão de que o Brasil está literalmente botando fogo na Amazônia, sem deixar de denunciar desvios no caminho. A responsabilidade da ciência é diminuir a polarização diante dos temas que rondam o meio ambiente, situação que acaba com a nossa capacidade de avaliar o que temos feito de positivo. Por exemplo, o Brasil pratica boas práticas em termos de política de resíduos sólidos. Precisamos ser mais precisos e menos impressionistas. 

Como podemos engajar mais cientistas em assuntos diplomáticos? 

Não é possível resolver problemas cada vez mais complexos sem equipes multidisciplinares. Por isso, recomendo que os cientistas reservem algum tempo para comunicar seus desafios e suas descobertas em congressos e encontros realizados fora do âmbito acadêmico, para que pessoas de outros segmentos da sociedade entendam como a pesquisa científica pode beneficiar a todos.  

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

Entrevistas

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
Receba nossa newsletter

Newsletter

Receba nossos conteúdos por e-mail. Preencha os dados abaixo para assinar nossa newsletter

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!
Cadastre-se na Newsletter do Science Arena