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#Entrevistas

A produção de sofrimento em mulheres com sintomas estéticos

Para antropóloga Fabíola Rohden, diagnóstico e tratamento da síndrome dos ovários policísticos estão profundamente associados a padrões de beleza tradicionais

Por meio da análise de depoimentos e imagens postadas no Facebook, a antropóloga Fabíola Rohden, da UFRGS, observou que, atualmente, o diagnóstico, o tratamento e a percepção da síndrome dos ovários policísticos são associadas a fatores estéticos. Para ela, este fenômeno está atrelado ao padrão de gênero binário, centrado nas diferenças corporais, produzido historicamente | Ilustração: Shutterstock

Em artigo publicado em fevereiro na revista Ciência e Saúde Coletiva, o grupo de pesquisa comandado pela antropóloga Fabíola Rohden, do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), discutiu, a partir de discursos veiculados em um grupo no Facebook com milhares de membros, o impacto da síndrome dos ovários policísticos (SOP) em adolescentes e mulheres em idade fértil. 

A SOP é um distúrbio endocrinológico caracterizado pelo aumento da produção de hormônio masculino em mulheres. O termo ‘policístico’ se refere ao aspecto habitualmente encontrado nos ovários das mulheres com a síndrome, com a presença de diversos pequenos cistos.

A síndrome acomete mulheres que naturalmente produzem uma quantidade maior de hormônios masculinos, os chamados andrógenos. Esse desequilíbrio hormonal interfere na ovulação e eleva a incidência de cistos, resultando de uma pequena falha nos folículos ovarianos, onde são produzidos os óvulos. Entre os sintomas, destacam-se a acne, o aumento de peso e a presença de pelos indesejáveis.

A análise científica dos depoimentos e das imagens publicadas pelas mulheres no Facebook sugere que diagnóstico, tratamento e percepção da SOP estão profundamente associados a fatores estéticos, além de possivelmente se basearem em dados estatísticos distorcidos.

Alinhando o enredo científico que emerge especificamente da análise da síndrome com resultados de outros estudos, Rohden apresenta, nesta entrevista ao Science Arena, um quadro geral que explica como as discussões entre pacientes nas mídias sociais podem estar “revolucionando” a relação entre pacientes e médicos nos consultórios.

São mudanças que, apesar de gerarem uma reação entre os profissionais de saúde, não são de todo ruim, na visão da antropóloga. Além da SOP, a chamada doença do silicone, outra síndrome investigada pelo grupo de Rohden, também revela insights interessantes relacionados à antropologia da saúde.  

Science Arena – Por que a escolha da síndrome dos ovários policísticos para este estudo em específico?

 Fabíola Rohden – Este trabalho é um estudo de caso dentro de um conjunto mais abrangente. É um estudo de caso que envolve o desenvolvimento de novas possibilidades de transformação corporal e subjetiva. Ou o que podemos definir como uma busca incessante pelo aprimoramento do corpo.

Os ovários policísticos aparecem, então, porque se trata de um diagnóstico considerado ainda controverso. É um diagnóstico que era feito de uma maneira diferente há 30 anos e, hoje, se faz de outra. Se você for conversar com uma médica ginecologista, ela terá uma percepção do assunto. Já o endocrinologista vai ter outra percepção.

O foco da nossa pesquisa, especificamente, estava em entender como as mulheres se relacionam com o diagnóstico controverso. Para isso, usamos o material publicado por mulheres que discutem o tema no Facebook. Nosso grupo também vem se dedicando a estudar o impacto da produção de autodiagnóstico e como isso influencia na relação com os próprios especialistas de medicina e nos tratamentos em geral.

Fabíola Rohden, da UFRGS: “SOP afeta a autoestima da mulher em função da dimensão estética, muito marcada por padrões de feminilidade” | Foto: Arquivo Pessoal

Há indícios de como o “Dr. Google” está influenciando a relação médico-paciente?

 Está claro que temos uma democratização relativa da informação de saúde. O relativo é importante porque muitas vezes são informações recebidas sem uma fonte confiável. E são também interpretadas de maneiras muito equivocadas. Portanto, entender como as pessoas se relacionam com esses recursos é absolutamente central para podermos falar sobre saúde.

Em particular, temos também a questão das cirurgias estéticas. As redes sociais têm sido o lugar onde as pessoas buscam compartilhar informações. Entre os objetivos ao fazer isso, está o de checar se a informação dada pelo médico ou médica está fazendo sentido, a partir da opinião de outras pessoas leigas. É uma relação bastante complexa, que precisa ser pensada com muito cuidado.

Temos que ter atenção em relação ao que ocorre nos grupos de redes sociais, entre elas Facebook, Instagram, WhatsApp e TikTok.

Existe uma espécie de intimidade nas redes sociais, em que as pessoas se sentem mais à vontade para falar sobre aspectos íntimos da vida, o que nem sempre ocorre no consultório.      

E isso ocorre no caso da Síndrome dos Ovários Policísticos?

 No caso da SOP, percebemos, a partir do estudo com grupos do Facebook, alguns aspectos absolutamente centrais no discurso público. Aparece a questão da fertilidade, entre as mulheres que estão tentando engravidar, e elas atribuem o insucesso à síndrome. Mas o que mais aparece mesmo é a questão do aspecto estético. E foi em função disso que a gente trabalhou mais em relação aos discursos. Para isso, selecionamos um grupo de Facebook com 184 mil membros.

 Dentro dessa amostragem é que foram feitas as categorizações dos discursos das pacientes?

Encontramos, podemos dizer, três temas de destaque. O primeiro, sem dúvida alguma, é o do emagrecimento. Existe um imperativo. Uma recomendação extremamente presente de que as mulheres com ovários policísticos precisam emagrecer. É um discurso, como destacamos, para além das necessidades da saúde. Existe o imperativo moral do emagrecimento em uma sociedade que tende a ser gordofóbica, que cultua o corpo magro e a ideia de juventude associada à magreza.

O segundo tópico é sobretudo o problema da acne. E, também neste caso, há toda uma necessidade de produzir intervenções que atenuem ou corrijam o problema. E o terceiro entrave, também de ordem estética, é o do crescimento dos pelos. Ele não tem nenhuma correlação com a saúde, porque o fato de você ter mais ou menos pelo não vai afetar a sua saúde. Mais uma vez, é uma questão de gênero.

As mulheres do grupo se sentem profundamente incomodadas por uma presença mais numerosa de pelos no corpo, especialmente nas partes mais visíveis. Ao somar isso à acne e à “necessidade” de emagrecimento, tem-se a noção de como a SOP afeta muito a autoestima das mulheres, associada a uma percepção mais geral de que é uma condição que afeta a feminilidade como um todo. O que observamos é que a busca com foco na supressão de fatores estéticos indesejáveis, mas que não são necessariamente indicadores de problemas de saúde, pode, em si, se tornar um fator de produção de sofrimento para essas mulheres.

 Como é possível melhorar a qualidade de vida dessas mulheres?

É importante demarcar um ponto que julgo muito relevante. O que conseguimos perceber, do ponto de vista de uma antropologia do corpo e da saúde, é como o diagnóstico de SOP está profundamente marcado por imposições sociais associadas a um certo padrão de feminilidade.

E muitas dessas mulheres são adolescentes. Porque a SOP começa a ser percebida e diagnosticada na adolescência. Então, muitas dessas mulheres e adolescentes entram em uma corrida intensa por busca de recursos para tratar essa condição que muitas vezes não tem nenhuma relação com um problema de saúde em si.

Mas, claro, que afeta a autoestima em função da dimensão estética, muito marcada por padrões de feminilidade e por imposição do lado masculino. Esse é o quadro. Nós tentamos compreender e estudar essas situações, mais relacionadas à estética e à questão mental.    

Existe um entendimento sobre o tamanho da SOP na população?

Se o diagnóstico é controverso, as estatísticas também o são. Em termos gerais, se fala que entre 6% e 16% das mulheres em idade reprodutiva teriam a SOP. O que significa muita gente. O que ocorreu historicamente é que a abordagem tradicional da SOP era via perspectiva ginecológica e o tratamento, feito com contraceptivos orais. Vamos deixar assim. É uma questão a ser investigada, apesar de achar que é mais do que isso, mas precisamos investigar quantas mulheres de fato têm SOP. Um contingente muito grande de gerações de mulheres passou a tomar contraceptivos orais muito cedo na adolescência durante um período muito prolongado em função de um diagnóstico de SOP.

Sem necessidade?

 Talvez sejam diagnósticos que não foram bem-feitos. Temos sobre isso, hoje, uma série de discussões e controvérsias. O uso do contraceptivo oral não é inofensivo. Ele tem uma série de consequências, pode ter outras interações clínicas e várias contraindicações por causa de efeitos colaterais. Para mim, é uma questão muito importante a ser investigada.

Digamos, um contingente muito grande pode ter tomado contraceptivos e não apenas não ter resolvido nada, mas agravado ou provocado certas consequências.

Não é uma questão de “demonizar” os profissionais, mas entender isso de uma perspectiva mais ampla. Questões de saúde, diagnósticos controversos e indústria farmacêutica operam nesse circuito. A própria internet está dentro desse contexto histórico, ao ajudar a disseminar informações tanto para o bem quanto para o mal.  

Mais para o mal?

Existem estudos de autores estrangeiros, e nossas pesquisas também caminham para isso, que mostram que podemos observar, hoje, diferentes tipos de pacientes.

Cada vez mais as pessoas vão se tornando uma espécie de “paciente especialista.”

Décadas atrás, as pessoas sentiam um problema e procuravam um médico e havia uma relação de autoridade com o médico. Havia uma confiança na ética médica, na ciência. A pessoa dizia que “estava nas mãos daquele médico”.

Hoje em dia, isso é bastante mais disperso e confuso. É muito comum que antes de sair de casa para uma consulta você procure no Google seus sintomas e tente descobrir algo. Ou então converse com outras pessoas pelas redes e já chegue no consultório como um especialista, já sabe até como aqueles sintomas são tratados, quais medicamentos usar e assim por diante.

Por um lado, isso pode ser muito bom e útil. Pode ser interessante as pessoas aprenderem a reconhecer melhor os sintomas. Mas, por outro lado, vai produzindo novas formas de interação, de desconfiança com o diagnóstico.     

E como os médicos se comportam diante disso? Existe um padrão?

Temos mapeado isso cada vez mais. Principalmente os médicos mais jovens estão indo para as redes sociais, tornando-se figuras públicas e uma espécie de formador de opinião. E as redes sociais, hoje, também cobram uma mistura entre vida profissional e pessoal. Há toda uma exposição pessoal e profissional também nas redes sociais.

Tem um fenômeno interessante que estamos estudando ainda. Institucionalmente, o que vem ocorrendo é que existem comportamentos mais reativos às redes sociais. Mapeamos alguns congressos e, em um deles, um médico apresentou um print de Facebook e disse, “como é que a gente vai reagir a isso?” O debate era sobre o uso ou não dos contraceptivos hormonais. Existem vários cenários nesse contexto.   

Cresce a importância da informação de qualidade?

Exato. Existe uma relação com o Google. Mas o paciente pode também estar em uma rede social, trocando informações com milhares de pessoas, dizendo que tem tal sintoma, e perguntando o que todos acham. Temos visto muito isso nos grupos que estudamos: “Olha, aqui está o meu exame, como eu interpreto isso?” Muitos perguntam nas redes.

E aí aparece um contingente enorme e variado de pessoas dizendo que aquele exame é parecido com o dela e o médico já disse isso ou aquilo sobre aquele problema. Nem todos têm o poder de filtrar tudo isso. Por isso defendo todas as iniciativas de divulgação científica, de comunicação, absolutamente fundamentais.

Existem exemplos para ilustrar casos em que a internet ajudou?

Existe um exemplo interessante a partir de estudos nossos. A Jéssica Brandt da Silva, uma orientada minha, fez sua pesquisa de mestrado sobre uma condição que se chama “doença do silicone”. É algo caracterizado por uma série de problemas que mulheres com silicone nos seios passaram a perceber. Não é uma rejeição imediata à matéria-prima, mas uma condição mais complexa, mais geral. As reações vão ocorrendo ao longo do tempo. E, de novo: é um diagnóstico muito controverso.

Existe, por enquanto, uma dificuldade da medicina mais tradicional de encarar que o problema existe. Mas há estudos epidemiológicos sobre isso. E o trabalho da Jéssica mostrou como, por meio das redes sociais, as mulheres que sentem essa condição foram relatando seus problemas e, ao longo dos anos, conseguiram montar uma perspectiva de que, é fato, existem milhares de outras mulheres sentindo sintomas parecidos e, portanto, era preciso lutar para que a síndrome fosse reconhecida.

O relato de experiências que têm muito em comum produz uma espécie de somatório de evidências paralelas. Ao se identificarem com a experiência da outra pessoa, têm o seu sofrimento reconhecido e seguem na busca por um diagnóstico válido. Esse reconhecimento é muito importante para essas mulheres.

É interessante que existam muitos consultórios médicos para ajudar as mulheres a terem o corpo que elas “idealizaram”. O sonho da feminilidade. Mas temos poucos profissionais disponíveis para a retirada das próteses quando isso é desejado e necessário.  E assim voltamos à questão de gênero, à relação complexa entre demandas de aprimoramento corporal impostas pela sociedade, a pressão das redes sociais e a associação com os recursos e profissionais médicos e sua responsabilidade ética.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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