Esforços para financiar a pesquisa
Para Fernanda de Negri, do Ipea, ampliação dos investimentos em ciência e inovação é central para a retomada do crescimento econômico.
É difícil vislumbrar uma ampliação dos investimentos em ciência e tecnologia em patamar equivalente ao que o Brasil investia em meados dos anos 2010. A avaliação é da economista Fernanda de Negri, coordenadora do Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e estudiosa dos desafios do país no desenvolvimento de inovações. Inaugurado em 2020, o centro é dedicado a produzir estudos e estimular debates sobre os impactos da ciência e da tecnologia na qualidade de vida das pessoas, especialmente nas áreas de saúde, educação e sustentabilidade.
Na avaliação da pesquisadora, um dos principais entraves do financiamento da pesquisa é a complexa situação fiscal de 2023 – uma triste certeza que resulta de ações políticas do governo anterior, do baixo crescimento econômico e da pressão que vem de áreas cronicamente asfixiadas nos últimos anos, como saúde e educação.
Para superar esse retrocesso de mais de uma década, a pesquisadora enfatiza a urgência de reconstruir pontes entre a comunidade científica e a sociedade, priorizando áreas como produtos médicos, adaptação às mudanças climáticas, novas fontes de energia, tecnologias agrícolas e inteligência artificial.
Confira a seguir a entrevista completa com Negri, que é doutora em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fez estágio de pós-doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Com a diminuição da capacidade de financiamento à pesquisa nos últimos anos, quais estratégias precisam ser implementadas, daqui para a frente, para que a ciência volte a ser valorizada no Brasil e ajude a recuperar a economia, especialmente no cenário pós-Covid?
Fernanda de Negri – Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que a situação fiscal do país é muito difícil em 2023.. Várias medidas tomadas em 2022 pelo governo Bolsonaro, para angariar apoio no Congresso ou ampliar sua popularidade, resultaram em custos fiscais significativos para o atual governo. Além disso, o baixo crescimento e o aumento da pobreza e da fome demandam investimentos públicos em programas de transferência de renda e em diversas áreas que ficaram subfinanciadas, como saúde e educação.
Nesse cenário, é muito difícil vislumbrar ampliação dos investimentos em ciência e tecnologia [C&T] em montante equivalente ao que investíamos em meados dos anos 2010. A recuperação dos investimentos nesse setor provavelmente será gradual e é com esse cenário mais parcimonioso em termos de repasse de recursos que precisamos desenhar estratégias eficazes.
É necessário, portanto, elaborar um planejamento de longo prazo para a recomposição dos investimentos em C&T, tanto na infraestrutura de pesquisa – que ficou defasada – quanto em áreas estratégicas para o país.
O que é necessário fazer em termos de planejamento?
Para planejar os investimentos de longo prazo em pesquisa, é necessário diálogo tanto com a comunidade científica quanto com a sociedade. Isso porque é a comunidade científica que deverá implementar qualquer estratégia, e é a sociedade em geral a principal beneficiária do progresso científico e tecnológico. Nesse sentido, o primeiro passo é restabelecer canais de diálogo envolvendo atores do sistema de pesquisa nacional, entre eles o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.
No entanto, não basta trazer de volta os canais de diálogo sem estabelecer métodos de debate que permitam a priorizar investimentos. É necessário que o governo apresente uma proposta consistente de investimentos em C&T sustentáveis no longo prazo. Esses investimentos deveriam apontar, entre outras coisas, para áreas estratégicas, nas quais a ciência tenha maior potencial de contribuir para o desenvolvimento do país e para a solução de problemas que afligem a sociedade.
Quais áreas científicas deveriam ser priorizadas?
Negri – É necessário fazer algumas apostas. Não temos recursos suficientes para investir generosamente em todas as áreas, como ocorre nos Estados Unidos. Além disso, temos sérios problemas a resolver no país para os quais a produção de conhecimento e de novas tecnologias pode contribuir decisivamente. No setor da saúde, por exemplo, a pandemia de Covid-19 mostrou que ter competências para produzir vacinas, medicamentos e insumos médicos pode fazer grande diferença na retomada do crescimento. No início da crise sanitária, a escassez de testes diagnósticos, vacinas e equipamentos hospitalares foi um grande obstáculo.
Somado a isso, o Brasil dispõe de um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, perdendo apenas para o do Canadá. Os países europeus, apesar de terem sistemas públicos de saúde estruturados, contam com populações expressivamente menores do que a brasileira. Nosso Sistema Único de Saúde [SUS] pode ser um grande laboratório para a aplicação de tecnologias inovadoras capazes de melhorar o acesso e a qualidade da atenção à saúde, ajudando a reduzir custos.
Nesse caso, fala-se da importância de alocar recursos para as tecnologias da informação aplicadas à saúde, incluindo avanços na chamada medicina de precisão e na genética. Não é complicado elaborar um plano amplo e inteligente de investimento em pesquisas nessas áreas. Isso poderia favorecer não apenas o SUS, mas também o setor industrial, aumentando a competitividade de empresas nacionais.
É preciso levar em conta desafios globais que também são enfrentados aqui, não?
Negri – Exatamente. Por exemplo, a população mundial está envelhecendo e os custos dos sistemas de saúde – públicos e privados – estão se tornando proibitivos. Novas tecnologias, em geral, tendem a aumentar esses custos, mas é possível também investir em tecnologias que os reduzam e que elevem a eficiência dos sistemas de saúde. Se o Brasil conseguir produzir tecnologias nessa direção, o país pode se tornar um player importante no mundo.
Já na arena do meio ambiente e das mudanças climáticas, ações de mitigação e de adaptação às alterações do clima estão na ordem do dia em todo o planeta. O Brasil tem uma capacidade gigantesca de contribuir nesse aspecto, ao apoiar projetos de preservação da Amazônia e de bioeconomia. É sabido que, sem a implantação de medidas para frear o desmatamento, os grandes centros urbanos e a produção agrícola serão violentamente impactados pelas mudanças climáticas. As crises hídricas recorrentes dos últimos anos são a expressão mais clara desse problema. Qualquer plano de investimento em C&T precisa priorizar essa questão, para que mais pesquisas em áreas como energias renováveis sejam fomentadas.
Por fim, a inteligência artificial tem mostrado inúmeras aplicações tanto na produção industrial quanto na própria geração de conhecimento novo. Aproveitar melhor a profusão de bancos de dados produzidos pelas sociedades modernas, por meio da inteligência artificial, é uma tendência da economia mundial.
Em relação aos desafios envolvendo o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e a necessidade de retomar investimentos públicos em pesquisa por meio de subvenções e incentivos fiscais, você considera que as ferramentas que o país dispõe hoje são suficientes?
Negri – Ao longo dos anos 2000, o Brasil criou uma série de instrumentos de política científica e tecnológica que não existiam, ou eram bem pouco usados até então. A subvenção para empresas, embora existisse formalmente desde o final dos anos 1990, foi substantivamente aprimorada em 2004, com a promulgação da Lei de Inovação. Isenções fiscais para investimento em pesquisa e desenvolvimento [P&D] eram praticamente inexistentes até 2005, quando finalmente foi criada a Lei do Bem. O crédito para a inovação ganhou um grande impulso a partir de 2008 e 2009, mas foi reduzido significativamente no período recente.
Desse ponto de vista, as ferramentas que temos hoje são bem mais completas do que as que tínhamos até o início dos anos 2000. Isso não significa que sejam suficientes – especialmente dado que instrumentos e ferramentas de política pública estão em constante evolução – tampouco que não demandem aprimoramentos. Mesmo assim, existe um arcabouço legal bem constituído, a partir do qual é possível retomar investimentos públicos em C&T.
O FNDCT – que é a fonte de recursos principal para a pesquisa científica nas universidades e, por meio da subvenção, nas empresas – sofreu com uma redução expressiva de recursos ao longo dos últimos sete anos. Atualmente, o orçamento do FNDCT voltou aos patamares do início dos anos 2000. Portanto, é fundamental recompor, mesmo que parcialmente, os recursos desse fundo. A recomposição pode se dar com base na definição de prioridade e a partir de mecanismos de governança mais transparentes, que privilegiem a qualidade e o impacto das pesquisas financiadas.
O que pode ser melhorado na gestão do FNDCT?
Um ponto a ser aperfeiçoado é o direcionamento de verbas para instalações de pesquisa de grande porte, tendo em vista um rol de prioridades estratégicas definidas em conjunto com a comunidade científica. Por meio disso, é possível ampliar o impacto dos investimentos realizados pelo FNDCT e pelos Fundos Setoriais. Há, ainda, outras ferramentas de estímulo à pesquisa que podem ser aprimoradas. Refiro-me, por exemplo, aos programas de P&D da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis [ANP] e da Agência Nacional de Energia Elétrica [Aneel]. Nesses casos, não se trata de recursos públicos, mas de uma obrigação de as empresas investirem uma determinada parcela de seus faturamentos em atividades de pesquisa.
O que outros países estão fazendo para fortalecer o apoio à pesquisa, nesse atual cenário de crise econômica global, e que poderia servir de modelo para o Brasil?
Negri – Vários governos têm lançado programas bastante ousados de investimentos que incluem fomento à pesquisa. Os Estados Unidos, por exemplo, acabaram de lançar um programa de apoio à indústria de semicondutores, para fazer frente à escassez de chips no mercado mundial e tentar reduzir sua dependência dos mercados asiáticos. A iniciativa conta com mais de US$ 11 bilhões em investimentos em P&D nesse segmento. O mesmo país também acabou de lançar um programa de redução da inflação decorrente da guerra entre Rússia e Ucrânia. Um dos principais objetivos dessa política é reduzir a dependência de combustíveis fósseis, acelerar a transição energética e fazer frente às mudanças climáticas.
É difícil falar em um “modelo para o Brasil”, afinal as instituições dos países são frutos de sua evolução histórica. Sempre é preciso adaptar soluções às realidades institucionais e políticas locais. Apesar disso, inúmeros exemplos internacionais de políticas públicas para inovação podem inspirar ações brasileiras. Nós, economistas, aprendemos muito nas últimas décadas, especialmente sobre quais políticas funcionam e quais não dão certo quando se deseja estimular a inovação. Esse conhecimento científico é pouco usado no processo de formulação de políticas públicas no Brasil.
O que ainda precisa ser feito para que o Congresso, a classe política e os gestores tomem decisões com mais embasamento científico e, ao mesmo tempo, direcionem mais recursos à ciência?
Negri – Não sei ao certo como fazer para que as evidências científicas sejam mais usadas na construção de políticas públicas no Brasil, tanto pelo Executivo quanto pelo Congresso. É certo que a política pública é resultado de vários fatores que não se resumem a apenas questões técnicas. Existe a pressão de grupos de interesse, muitos deles legítimos. No entanto, algumas ações públicas fogem completamente de qualquer racionalidade. O uso de medicamentos ineficazes e prejudiciais para o tratamento da Covid, durante a pandemia, é um exemplo emblemático. Acredito que a maior utilização de evidências científicas na formulação de políticas públicas deve passar por um longo processo de amadurecimento institucional que ainda temos que percorrer.
Qual o papel das instituições de pesquisa privadas em um contexto de queda dos investimentos públicos em ciência?
Negri – Antes de qualquer coisa, é preciso entender exatamente do que estamos tratando quando falamos de participação do setor privado na pesquisa e o quanto isso representa no todo. Nos países desenvolvidos, mais de 60% dos investimentos em P&D são realizados pelo setor privado, enquanto nos países em desenvolvimento essa proporção é próxima ou um pouco menor do que 50%. Mas esse investimento privado é feito predominantemente no desenvolvimento de produtos – ou seja, a letra D na sigla P&D. Mesmo em países desenvolvidos, apenas marginalmente as empresas investem de fato em pesquisa científica. Portanto, o primeiro tipo de investimento privado em P&D é aquele voltado para o desenvolvimento de produtos por parte das empresas.
Agora, existe também o investimento privado na pesquisa científica conduzida em universidades, onde geralmente se faz pesquisa básica, que pode levar um tempo para alcançar aplicação comercial. Mas, mesmo em países como os Estados Unidos, esse investimento em ciência básica é pequeno frente ao investimento público.
Dados da National Science Foundation [NSF] – principal agência norte-americana de financiamento à ciência básica – mostram que apenas cerca de 6% do orçamento de pesquisa das universidades estadunidenses são provenientes do setor privado. Isso significa que poucas empresas ou instituições filantrópicas privadas financiam pesquisas nas universidades.
Um terceiro tipo de investimento privado em pesquisa é aquele realizado por instituições particulares com financiamento exclusivamente privado. Um exemplo norte-americano seria o Howard Hughes Medical Institute [HHMI], uma entidade filantrópica que opera com recursos privados financiando a pesquisa em medicina. No Brasil, o Instituto Serrapilheira, no Rio de Janeiro, é um exemplo de instituição que financia projetos de pesquisa com recursos privados. No entanto, esse tipo de investimento representa muito pouco do montante total direcionado à pesquisa em vários países.
Em muitas nações, também há uma cultura de doações expressiva.
Negri – Isso mesmo. Nos Estados Unidos e em alguns países europeus há os chamados fundos de endowment, isto é, um fundo patrimonial filantrópico. Geralmente são compostos por doações de ex-alunos, grandes empresários e bilionários e costumam ser administrados pelas próprias universidades. Nos Estados Unidos – que têm uma tradição histórica e mecanismos de incentivo fiscal para esse tipo de doação –, os fundos de endowment representam parcela significativa do financiamento da pesquisa em instituições como a Universidade Harvard e o MIT. Esse seria o quarto tipo de investimento privado em pesquisa.
Há mais outra modalidade?
Negri – Sim, podemos destacar também as instituições de pesquisa que são financiadas pelo setor público, mas geridas de maneira mais autônoma por organizações sem fins lucrativos. Esse modelo é bastante comum na Alemanha, nos Estados Unidos e na Coreia do Sul. O principal exemplo norte-americano desse tipo de instituição são os grandes laboratórios nacionais. Já no Brasil, temos as organizações sociais geridas de forma mais flexível do que a administração pública direta. Em qualquer um desses países, contudo, o financiamento dessas instituições é proveniente de recursos públicos.
No Brasil, temos espaço para avançar tanto no investimento empresarial em P&D – o que requer um ambiente econômico mais propício à inovação – quanto nos investimentos filantrópicos em instituições privadas ou por meio de doações a universidades e organizações públicas de pesquisa. Para estimular investimentos do segundo tipo, é preciso fazer algumas modificações na nossa estrutura tributária, como a isenção de impostos para doações filantrópicas. Doações no Brasil, mesmo as filantrópicas, são tributadas pelos estados em média em 4,5%.
No entanto, é sempre bom ter em mente que esse tipo de investimento privado em pesquisa não será suficiente para contrapor a queda nos investimentos públicos. No mundo todo, a pesquisa científica é financiada predominantemente pelo Estado. Não há soluções mágicas.
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