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18.01.2024 Neurociência

Henning Ulrich: os mecanismos por trás dos receptores

Bioquímico alemão, radicado no Brasil, investiga receptores de purinas e cininas em busca de terapias para doenças neurológicas

Estudos conduzidos por Henning Ulrich, da USP, buscam elucidar como sistemas de sinalização via purinas e cininas podem ser alvos terapêuticos para reverter patologias neurológicas como a doença de Parkinson, Alzheimer e Huntington | Imagem: Shutterstock

O bioquímico alemão Henning Ulrich, radicado no Brasil há 25 anos, investiga há pelo menos duas décadas os processos químicos e biológicos envolvidos na transformação de células-tronco em células especializadas do indivíduo adulto. Professor titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), Ulrich destaca-se por suas contribuições em estudos sobre a bradicinina, um hormônio que ajuda a relaxar os vasos sanguíneos e reduzir a pressão arterial.

Em sua tese de doutorado, defendida em 1995 na Universidade de Hamburgo, na Alemanha, o pesquisador suspeitou que a bradicinina – que é encontrada no sangue – poderia fazer mais do que baixar pressão arterial e desencadear inflamações localizadas como resposta natural do organismo a lesões.

Ao investigar os mecanismos de proliferação de tumores do tecido neural, Ulrich observou que a bradicinina acionava certos mecanismos de sinalização nessas células. Percebeu que o efeito era mais ameno ou nulo em outras células. 

Mais adiante, observou que, sob tratamento de células-tronco embrionárias e neurais com bradicinina, surgem neurônios sensíveis ao neurotransmissor acetilcolina, mensageiro químico que conduz a informação de um neurônio ao outro.

Também descobriu que a inibição do receptor de bradicinina direciona as células-tronco neurais a se diferenciarem em células gliais, enquanto as células-tronco originam predominantemente neurônios na presença de bradicinina.

Nos últimos anos, o bioquímico tem se dedicado a pesquisar receptores de purinas e cininas como alvos de estudo e intervenção terapêutica em doenças neurológicas. Em um amplo estudo, Ulrich e demais pesquisadores investigam a importância do processo de neurogênese na regeneração de tecidos neurais.

Ulrich demonstrou recentemente que o corante alimentar Brilliant Blue-G, um inibidor do receptor purinérgico P2X7, regenerou os neurônios dopaminérgicos em um modelo animal da doença de Parkinson.

Esses resultados apontam para o receptor P2X7 como um alvo terapêutico no Parkinson. Ulrich investiga este e outros receptores purinérgicos no contexto de doenças cerebrais (Parkinson, Alzheimer, Huntington, depressão e esquizofrenia).

Nesta entrevista ao Science Arena, o professor da USP fala sobre a ciência básica por trás dos receptores de purinas e cininas e quais são os desafios para investigar a fundo os sistemas de sinalização que podem ser alvos terapêuticos.

Science Arena – Quais são os desafios de estudar as purinas e o que se sabe sobre a função destes receptores como potenciais marcadores para terapias de doenças neurológicas?

Henning Ulrich – As purinas são componentes fundamentais do DNA e do RNA. Purinas são famosos por seu papel no metabolismo do organismo, como a adenosina trifosfato (ATP), que fornece energia para as reações celulares. Isso é muito bem conhecido. A novidade que trazemos é que a ATP é liberada pelas células por diferentes processos, classicamente como a exocitose, ou por canais que liberam ATP, e células no processo de morte que liberam ATP para fora.

A ATP é uma molécula ancestral, talvez uma das primeiras que promove a comunicação entre as células e a sinalização de fora para dentro da célula.

O conhecimento avançou com a identificação de receptores purinérgicos ativados por ATP e demais nucleotídeos que introduzem várias vias de transdução de sinal.  

Em meu laboratório, um dos focos é o receptor P2X7, que é expresso em células da micróglia e em astrócitos ativados (células que dão sustentação e nutrem os neurônios) do sistema nervoso central.

A ativação dessas células ocorre em uma lesão cerebral, por trauma ou por infecção, ou por simplesmente translocação de um processo inflamatório para o cérebro.

Basicamente, é efetivo inibir esse receptor porque ele ativa um complexo multimolecular denominado inflamassoma, que dispara a resposta inflamatória. Células neuronais, por exemplo, morrem e liberam ATP, que ativa ainda mais receptores P2X7 e, assim, são liberadas citosinas pró-inflamatórias, que aumentam a inflamação e causam morte neuronal.

O que foi possível observar, em modelos animais e in vitro, quanto à capacidade destes sistemas de purinas e cininas em realizar uma modulação capaz de determinar o fenótipo dos neurônios?

O que fizemos em meu laboratório foi primeiro estudar o fenótipo de neurônios diferenciados de células-tronco neurais. Nós utilizamos células-tronco pluripotentes induzidas de pacientes com Huntington – uma doença neurológica rara, que debilita bastante as pessoas e se manifesta entre os 30 e 40 anos de idade, geralmente matando antes dos 60 anos.

Pudemos mostrar que o receptor PY2, um dos receptores purinérgicos, induziu essas células a se tornarem neurônios GABAérgicos. Esse é o tipo de neurônio que morre durante o progresso da doença de Huntington. Assim, identificamos um possível alvo terapêutico para o tratamento ou prevenção da doença de Huntington.

Seus estudos apontam para a possibilidade de reverter, inicialmente em animais, doenças como Parkinson, Alzheimer, Huntington e outras patologias neurológicas?

Estamos vendo isso principalmente em Parkinson, na inibição do receptor P2X7, que dá, em modelos animais, uma reversão total da doença, que é basicamente um modelo induzido por injeção de uma toxina.

Temos estudado um segundo receptor, que também é envolvido na inflamação, chamado receptor P2Y6, e estamos vendo, nesse caso, não como uma reversão propriamente, porque ele não reverte.  No entanto, se esse composto for aplicado antes ou junto com a toxina, há uma proteção parcial.

Os animais não são totalmente curados, mas eles são bem diferentes de animais não tratados. Isso foi claramente visto no meu modelo. O restante dos estudos que foram feitos no meu laboratório foi com modelos de células-tronco.

Isso justifica muito bem, por exemplo, na doença de Huntington, porque é de origem genética. E nela nós já mostramos que há a falha no receptor sobre o qual comentei, o P2Y2.

Como deve ser a transposição desse conhecimento de pesquisa pré-clínica para o estudo com humanos?

Para esse passo, o ideal é começarmos pela doença de Parkinson, usando um modelo genético ou um modelo gerado por injeção de proteína alfa-sinucleína. Depois devemos utilizar outros modelos pré-clínicos, talvez com macacos.

Já há testes clínicos com o receptor P2X7 em humanos, mas não são ensaios fáceis, porque você não vai injetar uma droga no cérebro.

É preciso modificar essa molécula para que ela possa entrar no cérebro e fazer o seu efeito. O problema é que você vai também inibir as funções fisiológicas desse receptor. Embora tenham sido realizados testes clínicos para tratamento de neuroinflamação na esclerose múltipla e na depressão em humanos com antagonistas do receptor P2X7, ainda não há resultados promissores. 

O que vimos até agora é um ensaio do pesquisador Robert Naviaux, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos, que usou suramina, um medicamento criado para eliminar parasitas, para tratar autismo, com bons resultados.

Uma única dose intravenosa de suramina melhorou os principais sintomas do autismo nas cinco crianças que receberam o composto. Contudo a suramina não é um antagonista seletivo. Ela inibe todos os receptores purinérgicos, assim como as enzimas, que degradam ATP, e possivelmente outras proteínas.

Em resumo, os ensaios que nós temos por enquanto, que são mais promissores com antagonistas de receptores purinérgicos, não são tanto para tratar doenças neuronais ou neurodegenerativas. Há três inibidores orais do receptor P2Y12 no mercado, como o clopidogrel, o prasugrel e o ticagrelor, que são medicamentos antiplaquetários.

O que foi descoberto ao investigar o papel da molécula tirfostina, em testes com camundongos, para evitar o agravamento da doença de Parkinson?

Esse estudo está sendo feito pelo professor Luiz Britto, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. Participei deste estudo como colaborador. Em camundongos, houve uma redução de cerca de 60% da morte de neurônios dopaminérgicos em condições de inibição do TRPM2 – um dos canais de entrada de cálcio nas células do cérebro.

Isso foi feito com uma substância à base da molécula AG-490, a tiforstina. Este composto inibe seletivamente o canal TRPM2. O procedimento adotado é muito similar ao que nós estamos fazendo, por exemplo, com os antagonistas dos receptores P2X7 e P2Y6. O tratamento com AG-490 leva basicamente a um efeito neuroprotetor no modelo de Parkinson induzido por 6-hidroxidopamina. A meu ver, são vias paralelas, e talvez seria interessante combinar essas vias para ver o que acontece.

Há exemplos concretos do potencial de células-tronco neurais em gerar novos tratamentos de doenças neurológicas?

Por que nós precisamos saber sobre a neurogênese? Porque, claramente, a neurogênese endógena é prejudicada em doenças neurodegenerativas, como, por exemplo, a doença de Parkinson. E muitos tratamentos de injetar células-troncos não foram muito promissores. As células podem morrer ou não se integrar na rede neuronal, formar focos necróticos e nada dá certo.

Então, a ideia é induzir a neurogênese e neuroproteção endógena – na qual você vai dizer para as células não diferenciadas ou progenitoras: “vá lá formar novos neurônios” ou “vá lá buscar meios de secretar compostos neurotróficos ou neuroprotetores que evitam a morte desses neurônios”.

E aqui existe um exemplo clássico, que é de instalar uma microbomba que permite a infusão contínua de fatores neurotróficos na região cerebral danificada.

Vale ressaltar também que há estudos mais promissores com células-tronco mesenquimais, que foram pré-programadas para liberar compostos para gerar um microambiente que promove a recuperação ou a regeneração dos neurônios perdidos ou danificados.  

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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