
A origem da epidemia de opioides nos Estados Unidos
Biomédico e divulgador científico recomenda obra que conta a história de medicamento apontado como um dos responsáveis por crise sanitária no país

O QUE RECOMENDO:
O livro Império da dor: A ascensão e queda de uma das mais poderosas famílias americanas e seu criminoso império farmacêutico (Intrínseca, 2023), do jornalista norte-americano Patrick Radden Keefe.
POR QUE VALE A LEITURA?
Desde o seu lançamento em 2021 (a versão em português é do ano passado), o livro Império da Dor tem se destacado cada vez mais nas prateleiras de livrarias e bibliotecas ao redor do mundo, recebendo uma avalanche de críticas positivas.
Escrito pelo aclamado autor Patrick Radden Keefe, esta obra meticulosamente pesquisada e envolvente é uma leitura obrigatória para aqueles que buscam desvendar a história secreta da família Sackler – muitas vezes referida como “a família mais maléfica da América” – e entender como eles podem ser responsáveis por desencadear uma das piores crises de saúde pública já enfrentadas nos Estados Unidos.
A família Sackler, renomada por seu amor às artes e suas ações filantrópicas nas décadas de 1930 e 1940, tem um lado sombrio que poucos conheciam, mas que é muito bem abordado no livro. Durante seus anos na faculdade de medicina, os irmãos Sackler se tornaram adeptos da terapia de choque e começaram a usá-la para tratar seus pacientes psiquiátricos ou até mesmo pacientes sem sintomas.
Infelizmente, esses tratamentos muitas vezes resultavam em pacientes submetidos a condições desumanas, o que levou muitos deles à morte. Em um momento crucial da história da medicina, nos anos 1960, os irmãos Sackler compraram uma pequena empresa farmacêutica que, mais tarde, se tornaria a Purdue Pharma.
Naquela época, eles já estavam acumulando fortunas vendendo ansiolíticos altamente viciantes. Quando a patente desses medicamentos expirou, os irmãos Sackler precisavam de um substituto.
Keefe mergulha no tema central de sua obra, que aborda a forma como a farmacêutica Purdue Pharma produziu um medicamento analgésico altamente viciante chamado Oxycontin. Cada detalhe é minuciosamente explorado pelo autor, inclusive a aplicação irregular de documentos para a Food and Drug Administration (FDA), a agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos, para regulamentar a venda do medicamento.
Após sua aprovação, o Oxycontin chegou a ser o medicamento mais vendido dos Estados Unidos, ultrapassando o Viagra. As práticas comerciais adotadas pela Purdue Pharma são altamente controversas e incluem prescrições excessivas e inadequadas do medicamento, bem como a manipulação de documentos e protocolos que amenizavam o impacto do Oxycontin na saúde dos pacientes.
Além disso, a empresa utilizava táticas agressivas de marketing para impulsionar as vendas do medicamento, como propagadas em consultórios médicos, que incluíam imagens de pessoas com a frase “I got my life back” (“recuperei minha vida”), e até incentivos financeiros para médicos que prescreviam o Oxycontin com frequência.
A farmacêutica chegou a pagar outros médicos para convencer colegas sobre os supostos benefícios do Oxycontin, apesar de o medicamento ser mais potente que a morfina e altamente viciante.
Infelizmente, o Oxycontin desempenhou um papel crucial na epidemia de opioides que atingiu vários países, especialmente os Estados Unidos, levando a um número alarmante de mortes por overdose – cerca de 500 mil pessoas nos últimos 20 anos.
Embora a crise tenha sido oficialmente reconhecida nos anos 1990, podemos claramente ver como as práticas comerciais questionáveis da família Sackler foram responsáveis por essa calamidade.
Em 2007, a Purdue Pharma e alguns de seus executivos se declararam culpados de acusações criminais relacionadas à promoção do Oxycontin. Foram multados em US$ 634 milhões e sentenciados a prestar serviços comunitários.
No entanto, a família Sackler não enfrentou acusações criminais graves por suas ações e manteve a posse da empresa. Em 2019, a companhia entrou com pedido de falência após enfrentar milhares de ações judiciais movidas por governos locais e estaduais dos Estados Unidos e vítimas da crise de opioides.
A família Sackler concordou em pagar US$225 milhões em um acordo com a Justiça para resolver as acusações civis relacionadas ao Oxycontin.
Com escrita envolvente e abordagem imparcial, o livro é uma fonte valiosa para qualquer pessoa interessada em compreender as causas e as consequências da epidemia de opioides que afeta tantas pessoas e comunidades em todo os Estados Unidos. De fato, a obra tem se tornado um ponto de referência para estudiosos, profissionais da saúde, pesquisadores e o público em geral que busca compreender melhor essa complexa questão.
No geral, Império da dor é um livro extremamente importante e provocativo, que lança luz sobre a epidemia de opioides, a indústria farmacêutica e a maneira como a riqueza e o poder podem ser usados para proteger indivíduos e empresas de suas responsabilidades.

Jonathan Vicente é biomédico patologista clínico, pós-graduado em ciência política com foco em saúde pública e mestre em saúde coletiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Atualmente, atua como membro e pesquisador da organização não governamental United for Global Mental Health e da Red Latinoamericana de Clima y Salud.
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