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21.11.2023 Ciências da Saúde

Ciência fértil no continente gelado

Pesquisadores enfrentam temperaturas baixas e mar agitado na Antártida em busca de benefícios para a saúde humana

Ilustrações: Bruna Martins/Estúdio Voador

Por mais que a Estação Antártica Comandante Ferraz, na Ilha Rei George, esteja um pouco além do meio do caminho entre Porto Alegre (RS) e o Polo Sul geográfico, dezenas de pesquisadores, técnicos e militares que se deslocam todos os anos para a Antártida enfrentam o isolamento e situações de temperaturas extremas em navios ou nas instalações da base científica brasileira no continente gelado.

O grande impacto visual e sensorial provocado pela fauna local, o deslumbre com as atípicas paisagens a partir de um ponto minúsculo na baía do Almirantado, onde tremula a bandeira brasileira, valem a pena. Os dias intensos de trabalho sobre as águas e o gelo ou dentro dos laboratórios requerem não apenas preparação prévia, mas disciplina rigorosa, física e mental, principalmente durante os meses de verão, quando a estação brasileira fica repleta e os trabalhos praticamente não param.

Nessa época do ano é quase sempre dia por lá, com exceção de algumas poucas horas em que o entardecer contínuo – nunca fica totalmente escuro entre dezembro e fevereiro – está presente. No inverno, apesar da presença de poucos pesquisadores, devido à logística ainda mais complexa, tudo se inverte. Não se vê quase a luz do dia na Ilha Rei George.

“É por conta de todas essas características extremas da Antártida que resolvemos desenvolver um projeto voltado para a fisiologia e a medicina humana”, conta a médica Rosa Maria Esteves Arantes, professora titular do Departamento de Patologia Geral do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Há mais de 10 anos, o grupo coordenado pela pesquisadora faz um levantamento do estado de saúde de militares e civis que trabalham na Antártida. Um dos objetivos, diz Arantes, é entender como o corpo responde às baixas temperaturas da região.

De acordo ela, os estudos de campo foram abalados em dois momentos cruciais: em fevereiro de 2012, quando a Estação foi destruída em um incêndio, e em março de 2020, com o início da pandemia de Covid-19 – apenas dois meses após ser reinaugurada. “Em ambas as situações, tivemos de reformatar protocolos específicos para trabalhar no local.”  

Coletas de sangue e saliva, por exemplo, foram paralisadas nos primeiros meses da pandemia, período em que Arantes e seu grupo ficaram impossibilitados de viajar para a Antártida. “A questão de como lidar com as amostras, que não podiam ser congeladas, foi um desafio”, recorda Arantes. “Por isso, decidimos não fazer as coletas por um tempo.”

Além da formação em medicina, concluída nos anos 1980, Arantes obteve o título de antropóloga em 2017. “A Antártida me fascina. Por isso é importante entender como o corpo humano responde a esse ambiente extremo, tanto do ponto de vista físico e mental quanto social”, pontua a cientista, destacando a importância de entender como o conhecimento da antropologia pode contribuir em pesquisas sobre a manutenção e a recuperação da saúde em diferentes lugares e culturas.

Desafios logísticos

As barreiras geográficas impostas pelo continente antártico criam obstáculos logísticos nada triviais para os pesquisadores. A estação brasileira está perto de várias bases de outros países, todas localizadas no mesmo arquipélago. Para se chegar por via aérea, com ajuda dos aviões da Força Aérea Brasileira, só se consegue pousar na região pelo aeródromo mantido pelos chilenos.

No entanto, quando a pista está ocasionalmente fechada por algum problema técnico, a única forma de chegar até a baía do Almirantado é por navio. E, mesmo quando se aterrissa na pista chilena, são algumas horas de barco até a estação Comandante Ferraz.

A estação Comandante Ferraz, base científica brasileira na Antártida, reinaugurada em janeiro de 2020, tem 4.500 metros quadrados (m²) de área construída e conta com 32 alojamentos, 14 laboratórios, setor de saúde, biblioteca e sala de estar | Foto: Proantar/Marinha do Brasil

“Estive lá há poucos meses. Chegamos à estação a bordo do navio polar Almirante Maximiano”, conta o educador físico Thiago Teixeira Mendes, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O pesquisador voltou à Estação Antártica Comandante Ferraz para coletar amostras que não puderam ser obtidas antes por causa da pandemia.

O Maximiano foi adquirido em 2009 com recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e incorporado à Marinha. A embarcação dispõe de três laboratórios de pesquisa, equipamentos como um guincho oceanográfico (para coletas de amostras de água de até 8 mil metros de profundidade) e tem capacidade para transportar mais de cem passageiros. 

O grande desafio da viagem costuma ser a Passagem de Drake, um trecho de mar entre a Península Antártica e a ponta austral da América do Sul. As condições dessa região marítima são extremamente complexas, com ventos que podem ultrapassar os 100 quilômetros por hora (Km/h), baixa visibilidade e fortes correntes marinhas. Tudo isso costuma deixar o mar bastante agitado.

Pesquisadores que participam com frequência do Programa Antártico Brasileiro (Proantar) quase sempre têm histórias para contar sobre o deslocamento marítimo até a base Comandante Ferraz. Relatos de gente que se amarrou à cama para não cair com o balanço forte do navio Maximiano não são raros. Muitas vezes, mesmo com todos a bordo, a viagem precisa ser cancelada, o que pode gerar angústia e alterar o humor das pessoas.

Um dos aspectos a serem avaliados no projeto de pesquisa liderado por Mendes, a propósito, é o desgaste físico e mental de pessoas que chegam a passar seis meses confinadas em navios polares.

“Na investigação, ainda em andamento, estamos percebendo a importância da prática regular de exercícios físicos tanto antes quanto durante a viagem de navio, que é equipado com uma academia”, explica Mendes.

“Estamos considerando variáveis hormonais, imunológicas e metabólicas associadas ao estresse e a alterações nos ritmos circadianos, que definem horários de sono e fome. A permanência em um navio polar caracteriza situação de isolamento em ambiente extremo.”

Em busca de vida microbiana

Outra iniciativa voltada à pesquisa em saúde na Antártida é o Projeto FioAntar, capitaneado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) desde 2019, ocasião em que passou a integrar o Proantar. O objetivo é identificar no continente antártico possíveis microrganismos causadores de doenças e com potencial biotecnológico.

Um dos estudos conduzidos por pesquisadores da Fiocruz detectou a presença do vírus influenza H11N2, um subtipo do vírus influenza A, em pinguins nas Ilhas Shetland do Sul, na Antártica. O achado, publicado no ano passado na revista Microbiology Spectrum, indica uma circulação contínua do H11N2 no continente e “reforça a necessidade da vigilância constante da gripe aviária” na Antártida.

Pesquisadores da Fiocruz detectaram a presença do vírus influenza A, subtipo H11N2, em pinguins nas Ilhas Shetland do Sul, na Antártida | Foto: Peter Ilicciev/Fiocruz

Em outro trabalho, publicado na revista Emerging Infectious Diseases, os pesquisadores detectaram pela primeira vez na Antártida o fungo Histoplasma sp, causador da histoplasmose, doença que pode acometer os pulmões e levar à morte.

Além de investigar possíveis novos patógenos, o FioAntar também faz trabalho de bioprospecção, com foco em organismos extremófilos, que vivem em ambientes extremos. São organismos, portanto, que têm em sua constituição moléculas e competências fisiológicas e químicas diferenciadas do que se encontra em outros lugares do planeta. A missão, nesse caso, é identificar quais desses organismos têm potencial para desenvolvimento de novas tecnologias e produtos em saúde, como fármacos e insumos.

Há muito tempo que a diversidade de microrganismos na Antártida chama a atenção de pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT Criosfera) – órgão responsável por aproximadamente 60% da pesquisa brasileira na Antártida. Um deles é o microbiologista Luiz Henrique Rosa, integrante do INCT Criosfera e chefe do Laboratório de Microbiologia Polar e Conexões Tropicais (MicroPolar) do Departamento de Microbiologia da UFMG.

O pesquisador realiza estudos na região há mais de 10 anos, coletando amostras de solo, sedimentos, rochas e plantas a fim de conhecer mais sobre microrganismos e plantas da Antártida. Nos últimos anos, Rosa participou de iniciativas para isolar fungos da neve e do solo, a fim de encontrar potenciais novos antibióticos para a medicina, principalmente para doenças tropicais como a dengue e a febre amarela.

“Como alguns fungos que vivem na Antártida estão adaptados a condições extremas e se encontram geograficamente isolados, eles podem apresentar vias metabólicas novas ou incomuns para a produção de compostos com potenciais aplicações biotecnológicas na medicina, na indústria e na agricultura”, escreveu Rosa em um dos capítulos do livro Fungi of Antarctica, organizado por ele em 2019.

Polo Sul

A presença brasileira na Antártida também vai muito além dos arredores da estação Comandante Ferraz. No verão passado, sob a supervisão do geólogo e glaciologista Jefferson Cardia Simões, coordenador-geral do INCT Criosfera, foi realizada uma expedição para a instalação de um laboratório brasileiro dentro do continente gelado, a aproximadamente 2,5 mil quilômetros ao sul da estação brasileira.

Trata-se do Módulo Científico Criosfera 2, implantado no interior do continente antártico, a uma temperatura de 15 graus negativos, por pesquisadores das universidades federais do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Pará (UFPA) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Pesquisadores brasileiros finalizaram a instalação do Criosfera 2 no início de 2023. O módulo científico registra dados de clima e de concentração de dióxido de carbono, o  principal gás de efeito estufa | Foto: Jefferson Simões/MCTI

O laboratório remoto tem como função complementar o trabalho do primeiro módulo (o Criosfera 1), registrando dados meteorológicos e de concentração de dióxido de carbono (CO2), principal gás do efeito estufa, associados ao aquecimento global e às mudanças climáticas – cujos efeitos, entre eles o calor extremo, impactam a saúde humana.

A análise das amostras de gelo busca contribuir na compreensão da mudança no nível do mar. As perfurações ocorreram na geleira da Ilha Pine, que tem mostrado rápidas mudanças nas últimas duas décadas.

Antes de partir, Simões, que desde 1991 faz pesquisas na Antártida, classificou o último verão como um momento importante da pesquisa antártica nacional. “Desde a reinauguração da estação brasileira, em janeiro de 2020, a missão com o Criosfera 2 foi a primeira operação completa, em que usamos a estação de modo pleno, algo que não era possível enquanto duravam as restrições impostas pela Covid-19.”

Hoje, a estação brasileira está totalmente em operação. “São 17 laboratórios onde podemos processar nossas amostras sem necessidade de levá-las ao Brasil”, informa o biólogo Paulo Câmara, professor do Departamento de Botânica da Universidade de Brasília (UnB).

Antes, relata Câmara, havia uma grande perda de amostras no transporte para o Brasil. “Agora, temos um ganho de rendimento interessante. Se o trabalho não sai como o esperado, podemos voltar a campo  e refazer a coleta.”

Câmara comanda estudos sobre fungos encontrados na Antártida. “Investigamos um fungo do gênero Mortierella que ataca plantas e tentamos entender se a presença dele está aumentando ou diminuindo na região”, explica o pesquisador. “Também pesquisamos a vegetação e os impactos da mudança do clima, além de produzir inventários de biodiversidade e de espécies ameaçadas, sempre nessa interface entre botânica e ecologia”, diz Câmara.

Apesar dos avanços, o pesquisador da UnB avalia que existem muitos desafios a serem enfrentados a fim de assegurar a continuidade de estudos na Antártida. “Um deles é garantir financiamento para os projetos. Nos últimos anos, houve instabilidade e corte de incentivos para a pesquisa brasileira e isso impactou o que fazemos no continente gelado.”

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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