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09.06.2023 Ética

Ciência paraquedas

Iniciativas buscam disseminar boas práticas de pesquisa para coibir injustiças em estudos de saúde global

Ciência paraquedas: Boas práticas de pesquisa para coibir injustiças Créditos: Rodrigo Teixeira | Punto Comunicação

A questão é antiga, latente e um imenso incômodo no mundo acadêmico: o conceito da chamada “ciência paraquedas” – ou, de forma menos sutil, colonialismo ou parasitismo científico. “É uma prática extrativista pela qual os pesquisadores – normalmente de países com muitos recursos – pesquisam e extraem dados e amostras de regiões ou populações menos favorecidas, sem o devido reconhecimento de todos os envolvidos”, definiram Beryne Odeny e Raffaella Bosurgi em recente editorial da PLOS Medicine (“Time to end parachute science”).

Mesmo quando pesquisadores locais são elencados nos artigos, as autoras do editorial apontam que não é raro que as desigualdades acadêmicas continuem a ser sustentadas por meio de hierarquias de ordem de listagem. Autores de países não centrais são, geralmente, colocados em posições intermediárias, ou seja, não assinam os papers em primeiro nem em último – posições geralmente reservadas para os responsáveis pelas principais contribuições ao estudo.

Uma análise publicada em 2019, no periódico BMJ Global Health, revelou que menos de 50% das publicações sobre doenças infecciosas da África tinham um primeiro ou último autor africano. As publicações revisadas, todas conduzidas no continente, tratavam sobre HIV, malária, tuberculose, salmonelose, ebola e úlcera de Buruli.

Mais que mero reconhecimento acadêmico, a questão é tratada no campo da ética por causa de suas graves implicações. “Esse colonialismo científico prejudicou e ainda prejudica os países do sul global que costumam ceder seus espaços e populações locais para a realização de pesquisas sem o devido compartilhamento dos benefícios e contextualização dos resultados”, aponta Marina Borba, doutora em bioética e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP).

Dumping ético

Na instância mais perversa, o colonialismo científico se traduz no chamado dumping ético. Dumping é um termo empregado em economia para designar prática comercial desleal em que empresas se articulam para vender mercadorias ou serviços por preços extraordinariamente abaixo de seu valor justo, a fim de quebrar a concorrência.

Um caso paradigmático de dumping ético no Brasil foi um estudo sobre vetores de malária no Amapá, coordenado pela Universidade da Flórida e financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NHI) em parceria com diversas instituições nacionais.

Embora o protocolo da pesquisa tenha sido aprovado por diferentes comitês de ética, o documento era diferente da versão em inglês e não mencionava que pagariam, em média, R$ 12 por dia a alguns moradores locais a fim de servirem de “iscas humanas” para a captura dos mosquitos.

“Os ribeirinhos participantes da pesquisa, que mal sabiam ler e escrever o próprio nome, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado por um pesquisador norte-americano”, relembra Borba.

Após denúncias, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) determinou a suspensão definitiva do estudo, além de encaminhar o caso ao Ministério Público para o ajuizamento das ações devidas e recomendar às revistas científicas a não publicação dos artigos – mas parte do trabalho já havia sido apresentada em congressos internacionais.

O exemplo mais recente é a pandemia de Covid-19. Uma pesquisa realizada pelo Grupo Direito e Pobreza da USP demonstrou que, enquanto os testes da vacina se concentraram majoritariamente no sul global, a produção e a distribuição de imunizantes contra o novo coronavírus foram e estão concentradas nos países mais ricos.

“Isso revela uma grande injustiça das pesquisas em saúde global pela iniquidade do compartilhamento dos benefícios gerados por tais pesquisas”, aponta Borba, que é também advogada e coordenadora do curso de Direito do Centro Universitário São Camilo. 

Décadas de combate

Ainda que seja afetado pelas mais diferentes práticas de colonialismo científico, o Brasil não está tão desassistido no tema. Desde 1996 o CNS dispõe de diretrizes – substituídas em 2012 pela resolução 466 – que determinam que, ao serem enviados para publicação, os resultados de pesquisa devem contemplar os devidos créditos aos pesquisadores associados e participantes do projeto.

“O Brasil tem um sistema ético robusto, formado pelo conjunto CEP/Conep, que coíbe práticas de duplo standard na pesquisa, exigindo que os projetos sejam conduzidos conforme o melhor padrão”, diz Jennifer Braathen Salgueiro, coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A pesquisadora cita, entre outros exemplos, que há “exigência de compartilhamento das amostras para os pesquisadores brasileiros – na mesma proporção que a enviada para bancos de material biológico no exterior –, e a garantia de uso dos melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos atuais”.

“O Brasil tem estado na vanguarda da legislação para proteger participantes de pesquisa e recursos nativos e, desde 1996, já enfatizava que pesquisas realizadas com participantes brasileiros deviam resultar em benefícios para eles. Essa é uma das pedras angulares da pesquisa equitativa”, afirma Doris Schroeder, diretora do Centre for Professional Ethics da University of Central Lancashire, no Reino Unido, e líder do projeto TRUST.

Composta por políticos, organizações civis, pesquisadores e empresários, a iniciativa internacional busca criar protocolos e códigos de ética que guiem cientistas a práticas de pesquisa que não perpetuem desigualdades históricas e dinâmicas exploratórias.

Mais que mero reconhecimento acadêmico, a questão é tratada no campo da ética por causa de suas graves implicações

Schroeder é a primeira autora do Global Code of Conduct for Research in Resource-Poor Settings (código de conduta mundial para pesquisa em regiões com poucos recursos, em tradução livre). Elaborado em 2018, contou com colaboradores de diversos países – como Filipinas, África do Sul, Índia e China – e orienta pesquisadores a conduzir parcerias entre países de forma justa. São 23 artigos redigidos com linguagem acessível e subdivididos em quatro seções: equidade, respeito, cuidado e honestidade.

O código tem por objetivo diminuir vários tipos de práticas predatórias, como receber apoio de pesquisadores e moradores locais para a coleta de material ou dados e não os creditar nas publicações; estabelecer parcerias desvantajosas com eles, nas quais nenhum tipo de contrapartida (convênios, parcerias, intercâmbio) é oferecido; não compartilhar os resultados da pesquisa de modo facilitado para a comunidade local.

Para Schroeder, desmantelar legados sistêmicos de exclusão na pesquisa científica requer ação nas extremidades do ciclo: começando com o financiamento e terminando com as publicações. “Isso já está acontecendo, o que também é uma boa notícia para a América Latina”, diz ela, citando uma série de provedores de recursos que já adotaram o Código, como Comissão Europeia, European & Developing Countries Clinical Trials Partnership (EDCTP) e Dutch Research Council (NWO). “Isso torna o financiamento dependente da construção de parcerias de pesquisa equitativas”, afirma.

Na ponta final, das publicações, cada vez mais grupos renomados estrangulam as brechas para melhorar as práticas. Em junho de 2022, a Nature Portfolio lançou uma nova estrutura de ética e inclusão baseada no Código. “Isso fecha o ciclo, pois as revistas de primeira linha também estão procurando evidências de que a pesquisa tenha sido conduzida de forma equitativa. É um grande passo em direção a uma maior inclusão na pesquisa”, destaca Schroeder.

Algumas dessas novas diretrizes são a exigência de inclusão dos nomes de pesquisadores dos países onde foram conduzidas as pesquisas na forma de coautores ou nos agradecimentos; incentivo à citação de autores residentes desses locais nos artigos; inclusão de pesquisadores dos locais de origem das pesquisas no processo de revisão por pares.

Em 23 de setembro de 2022, a Nature ainda publicou um editorial que chamou a atenção da comunidade científica internacional pelo mea culpa explícito: “How Nature contributed to science’s discriminatory legacy – We want to acknowledge – and learn from – our history”.

Desmantelar legados sistêmicos de exclusão na pesquisa científica requer ação nas extremidades do ciclo: começando com o financiamento e terminando com as publicações

No caso de outro grupo de publicação da área médica, The Lancet, também há forte comprometimento com a equidade no editorial, com a declarada rejeição de artigos com dados da África que não reconheçam os colaboradores africanos.

A PLOS há alguns anos busca maior comprometimento na inclusão em suas diretrizes. Odeny e Bosurgi elencam no mais recente editorial sobre o tema sugestões para melhorar a prática, como envolver as partes interessadas locais na definição de prioridades, conceituação e concepção da pesquisa; capacitar cientistas locais para desempenhar papéis de liderança na condução da pesquisa; pesquisar periódicos locais renomados para citá-los e, com isso, aumentar a visibilidade.

“Como parte do compromisso da PLOS Medicine, agora exigimos que os pesquisadores locais sejam os primeiros ou os últimos autores de publicações baseadas em pesquisas globais. Com essa iniciativa esperamos corrigir assimetrias de poder acadêmico há muito debatidas e que se escondiam sob hierarquias nas listas de autor”.

“As novas políticas editoriais dos periódicos mais renomados voltadas ao combate do imperialismo acadêmico são extremamente relevantes, pois promoverão a equidade e a sustentabilidade da pesquisa em saúde global, em razão da sua capacidade de influência e persuasão dos pesquisadores do norte global a essa questão”, comemora Borba.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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