
Como enchentes no Rio Grande do Sul afetam a ciência gaúcha
Catástrofe climática causou interrupção de ensaios clínicos e atividades de pesquisa; instituições foram inundadas ou convertidas em centros de acolhimento para desabrigados

Para além dos impactos sociais, econômicos e ambientais, as enchentes que assolam o Rio Grande do Sul também têm afetado as atividades de ensino e pesquisa no estado. Segundo estimativas da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), as universidades gaúchas só devem voltar ao normal no final do ano.
Muitas instituições de ensino superior foram inundadas, tiveram suas atividades suspensas ou se transformaram em centros de acolhimento para desabrigados e desalojados.
O pavimento térreo da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no centro da capital Porto Alegre, foi completamente tomado pelas águas do lago Guaíba, acarretando perdas de livros, equipamentos e mobiliários, como mesas e cadeiras. A universidade ainda avalia os danos na parte elétrica do prédio. As aulas estão suspensas desde 1º de maio e não há previsão de retomada das atividades.
Já o ginásio da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS, localizado no Jardim Botânico, funciona há quase um mês como abrigo para desabrigados e desalojados. “Estudantes, professores e pesquisadores estão todos mobilizados neste momento para prestar atendimento às pessoas atingidas”, disse ao Science Arena a física Márcia Barbosa, pesquisadora da UFRGS e secretária de Políticas e Programas Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Pesquisadores ilhados
Segundo a Defesa Civil do estado, 471 dos 497 municípios gaúchos foram atingidos pelas enchentes. Somente na região metropolitana de Porto Alegre, estima-se que 242 mil domicílios tenham sido afetados. “Muitos pesquisadores ficaram ilhados em suas casas ou tiveram de deixá-las temporariamente”, relata o médico Regis Goulart Rosa, pesquisador e chefe do Serviço de Medicina Interna do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. “Outros tiveram de interromper suas pesquisas porque foram realocados em serviços de atendimento emergencial de pessoas acometidas.”
Com ruas, avenidas e estradas alagadas, tornou-se praticamente impossível se locomover pelo estado ou sair dele.
Muitos pesquisadores não conseguem se deslocar para seus laboratórios e sítios para coleta de dados, ou enviar e receber insumos e amostras para o desenvolvimento de suas pesquisas.
“Até mesmo o trabalho remoto foi comprometido, uma vez que vários ficaram sem energia e conexão com a internet”, afirma o médico.
Rosa é um dos pesquisadores principais de um estudo multicêntrico nacional (Rehab-VM Brasil), desenvolvido em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e o Ministério da Saúde, que está testando uma nova intervenção voltada à prevenção de sequelas e reabilitação precoce de pacientes submetidos à ventilação mecânica. O estudo conta com a participação de várias Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) espalhadas pelo país.
“Nossa equipe tinha visitas agendadas a UTIs para treinar os profissionais no protocolo do estudo e iniciar a pesquisa, mas nossa operação teve de ser repensada porque o aeroporto de Porto Alegre foi inundado e todos os voos foram cancelados”, comenta o pesquisador. “Tivemos de adaptar nosso protocolo para permitir que esse treinamento inicial fosse feito à distância”, completa.
Prorrogação de bolsas
Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no sul do estado, as atividades acadêmicas estão suspensas desde o início de maio, uma vez que alguns bairros da cidade ficaram alagados por conta do aumento dos níveis das águas do canal São Gonçalo — via fluvial que liga a lagoa Mirim à laguna dos Patos — e da própria laguna.
Pelotas sofreu menos com as enchentes porque a prefeitura teve tempo de evacuar bairros antes da chegada das águas que atingiam Porto Alegre. Isso fez com que muitas pessoas tivessem de deixar suas casas temporariamente, mesmo que suas casas não tivessem sido alagadas.
Ainda assim, vários pesquisadores tiveram seus trabalhos interrompidos ou prejudicados de alguma maneira. Caso da epidemiologista Bruna Gonçalves Cordeiro da Silva, do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia (PPGEpi) da UFPel. Há alguns anos, ela trabalha no acompanhamento periódico da saúde de todas as crianças nascidas em Pelotas nos anos de 1982, 1993, 2004 e 2015.
De tempos em tempos, os nascidos em cada ano são procurados para responder a um questionário e fazer avaliações físicas no Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel. “Iniciamos os trabalhos com os nascidos em 1993 em julho do ano passado com a expectativa de avaliar 3.500 pessoas e concluí-los em julho deste ano”, explica Silva. Com as enchentes, vários participantes desmarcaram suas avaliações.
“Nesse momento, qualquer chuva gera uma angústia muito grande”, diz a pesquisadora. Segundo ela, será difícil conseguir remarcar uma nova visita com eles. “Alguns estão desalojados ou desabrigados, outros estão incomunicáveis, de modo que é possível que tenhamos perdido definitivamente alguns participantes.”
Além de atrasar o trabalho de campo e encarecer a pesquisa, as enchentes em Pelotas também devem atrasar a formação de estudantes de mestrado e doutorado ligados ao projeto, que dependem desses dados para concluir suas dissertações e teses.
“Eles terão que solicitar prorrogação das bolsas e dos prazos para depósito dos trabalhos”, diz Silva, que teme que isso impacte o programa na próxima avaliação quadrienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Em Rio Grande, a equipe do médico Juraci Almeida Cesar, do Departamento Materno-Infantil da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), teve que interromper sua pesquisa porque dois dos hospitais públicos responsáveis por quase 90% dos partos na cidade — o Hospital Universitário da FURG e a Santa Casa de Misericórdia de Rio Grande — ficaram alagados.

Desde 2007 ele desenvolve um estudo a cada três anos para acompanhar os nascimentos na cidade. “Medimos e pesamos as crianças, e entrevistamos as mães até dois dias após terem dado à luz para saber quando decidiram engravidar, se fizeram o pré-natal corretamente, se sofreram algum tipo de violência obstétrica no hospital, entre outras coisas.”
O estudo, segundo ele, é importante porque monitora a qualidade da assistência pré-natal e ajuda no planejamento das ações nessa área no município. O último havia sido feito em 2019. “Em 2022 não foi possível por causa da pandemia e em 2023 não tínhamos dinheiro”, conta Cesar. “Conseguimos recursos para 2024, mas nosso trabalho foi comprometido pelo fechamento das maternidades nas quais a pesquisa vinha sendo desenvolvida.”
Os partos da Santa Casa foram transferidos para o Hospital de Cardiologia e Oncologia, da própria Santa Casa, “mas o espaço lá é pequeno, o que nos impede de entrevistar as mães e examinar as crianças”, diz o pesquisador. Já os partos do Hospital Universitário da FURG estão sendo enviados para as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Rio Grande e de outros municípios próximos.
“Antes, conseguíamos entrevistar 99% das 150 mulheres que, em média, dão à luz no município todos os meses. Em maio, conseguimos entrevistar apenas um terço delas.” Muitas mulheres estão dando à luz nas UPAsou em suas casas e não serão incluídas no estudo. “Temos agora uma lacuna em nossa amostra”, ressalta Cesar, cuja casa ficou a 12 centímetros de ser alagada. “Se essa situação persistir, nosso estudo poderá ser inviabilizado.”
No dia 23 de maio, o governo federal destinou R$ 22 milhões para a limpeza, manutenção e recuperação das instituições de ensino superior do Rio Grande do Sul. Segundo levantamento da CNN Brasil, serão necessários R$ 124,3 milhões para que dez das 11 universidades gaúchas se recuperem plenamente e voltem ao que eram antes da catástrofe.
A única universidade que não solicitou verbas ao Ministério da Educação foi a Universidade Federal da Fronteira do Sul (UFFS), cujos campi não foram afetados pelas chuvas de maio.
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