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Existe mesmo uma crise de confiança na ciência?

Em editorial, The Lancet sugere que confiança pública na ciência é relativamente alta, mas divulgação científica ainda é ponto crítico

Cena abstrata mostra dois cientistas, em destaque, dialogando diante de um público atento, sugerindo a comunicação direta entre pesquisa e sociedade. Tons intensos de vermelho, azul escuro, preto e branco criam um clima de tensão e dinamismo, evocando debates sobre confiança e incerteza. Formas geométricas fragmentadas ao fundo remetem à complexidade dos processos científicos e à necessidade de torná-los compreensíveis para o público. Editorial da revista The Lancet argumenta que a credibilidade da ciência em si não é um problema, mas sim a forma como os próprios cientistas comunicam processos, incertezas e limitações de suas pesquisas ao público em geral | Imagem gerada por IA

Em editorial publicado no dia 29 de novembro na revista The Lancet, Richard Horton, editor-chefe do periódico, lançou uma pergunta provocativa — e a utilizou para virar de ponta-cabeça uma narrativa que se consolidou no debate público: a ideia de que vivemos uma erosão crescente da confiança na ciência.

Segundo ele, embora exemplos como movimentos antivacina, negacionismo climático e teorias conspiratórias sobre a pandemia de covid-19 pareçam confirmar esse diagnóstico, os dados mais recentes sugerem exatamente o contrário.

Horton destaca resultados de duas pesquisas amplas – conduzidas, respectivamente, nos Estados Unidos e em 68 países – que indicam níveis elevados e estáveis de confiança pública na ciência e nos cientistas.

O problema, enfatiza o editor, não é a credibilidade da ciência em si — mas a forma como os próprios cientistas estão comunicando seus processos, suas incertezas e suas limitações.

Dados que desafiam o senso comum

A primeira evidência apresentada no editorial da Lancet é o levantamento realizado em outubro de 2024 pelo Pew Research Center com 9.593 adultos dos EUA.

O resultado surpreende:

Em 2020, auge da crise sanitária, a confiança havia atingido 87%, caindo nos anos seguintes. No entanto, conforme Horton ressalta, o movimento agora é ascendente — e especialmente rápido entre republicanos – grupo que apresentou maior deterioração no período.

Os cientistas continuam também a superar outras categorias profissionais, como jornalistas, políticos, líderes empresariais e religiosos.

Em atributos individuais, pesquisadores são vistos como:

O editorial reforça que esse fenômeno não é uma particularidade dos EUA. Horton cita outro estudo, coordenado por Victoria Cologna e colegas, publicado na Nature Human Behaviour em janeiro de 2025, que investigou atitudes em 68 países (dentre eles o Brasil), com mais de 71 mil respondentes.

O resultado é categórico: a confiança global nos cientistas foi classificada como “moderadamente alta”, com média 3,62 em uma escala de 1 a 5. Nenhum país registrou nível “muito baixo” de confiança.

Além disso, 75% dos participantes concordaram que o método científico é a melhor forma de verificar hipóteses — sinal claro de apoio às bases do pensamento científico.

Para Horton, essas evidências contrariam a ideia disseminada — inclusive dentro da comunidade acadêmica — de que o público se afastou da ciência.

Ao contrário, os dados mostram uma atitude predominantemente favorável, com nuances culturais, sociais e políticas que merecem atenção, mas não sustentam um diagnóstico de “crise”.

O verdadeiro ponto fraco: divulgação científica

Se a confiança nos cientistas permanece alta, por que persiste a sensação de distanciamento entre ciência e sociedade? Horton identifica um ponto sensível revelado no estudo do Pew Research Center: apenas 45% dos americanos consideram os cientistas bons comunicadores — uma queda significativa em relação a 2019.

É neste ponto que o editorial assinado por Horton muda de tom e passa a discutir a urgência de repensar como a ciência se comunica. Inspirado pelo livro “In a Flight of Starlings” (Penguin Press, 2023), escrito pelo físico italiano e Nobel Giorgio Parisi, Horton argumenta que comunicar resultados não é o suficiente.

Giorgio Parisi propõe algo mais ambicioso: mostrar o processo científico, com suas incertezas, impasses e surpresas.

Principais aspectos sobre comunicação abordados no editorial da Lancet

O físico Giorgio Parisi aparece na imagem usando um terno escuro, discursando atrás de um púlpito transparente decorado com rosas amarelas. Ao fundo, vê se um painel escuro e um arranjo de flores amarelas e azuis desfocado
Mencionado no editorial de Richard Horton na The Lancet, o físico italiano Giorgio Parisi – em seu livro “In a Flight of Starlings”, de 2023 – critica os cientistas por, às vezes, parecerem arrogantes e superiores ao não reconhecerem as limitações da ciência | Imagem: © Nobel Prize Outreach. Photo: Laura Sbarbori

Por que essa discussão importa?

O editorial de Horton é, ao mesmo tempo, uma crítica à narrativa de “crise de confiança” e um alerta para um problema real: a divulgação científica ao grande público continua insuficiente para acompanhar as expectativas e os modos de consumo de informação no século XXI.

Ao analisar pesquisas robustas e referências intelectuais contemporâneas, Horton mostra que a confiança existe — o que falta é aproximação, clareza, humildade epistemológica e capacidade de construir pontes entre ciência e sociedade.

Os estudos citados no editorial da Lancet:

Pew Research Center (2024)

Pesquisa com 9.593 adultos nos EUA. Conclusão: confiança pública em cientistas é alta e está em recuperação após a pandemia. Diferenças partidárias persistem, mas com tendência de recomposição. Atributos de inteligência, honestidade e orientação ao bem público são amplamente reconhecidos.

Cologna et al., Nature Human Behaviour (2025)

Estudo em 68 países com mais de 71 mil pessoas. Confiança global em cientistas foi “moderadamente alta”. Competência recebeu a nota mais elevada; abertura, a mais baixa, mas ainda positiva. A maioria considera o método científico a melhor forma de testar hipóteses.

Giorgio Parisi, In a Flight of Starlings (2023)

Livro que inspira a discussão final. Defende maior transparência metodológica e crítica ao tom de superioridade ocasional da comunicação científica. Posiciona a ciência como parte essencial da cultura, e não apenas como geradora de tecnologias úteis.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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