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Existe mesmo uma crise de confiança na ciência?
Em editorial, The Lancet sugere que confiança pública na ciência é relativamente alta, mas divulgação científica ainda é ponto crítico
Editorial da revista The Lancet argumenta que a credibilidade da ciência em si não é um problema, mas sim a forma como os próprios cientistas comunicam processos, incertezas e limitações de suas pesquisas ao público em geral | Imagem gerada por IA
Em editorial publicado no dia 29 de novembro na revista The Lancet, Richard Horton, editor-chefe do periódico, lançou uma pergunta provocativa — e a utilizou para virar de ponta-cabeça uma narrativa que se consolidou no debate público: a ideia de que vivemos uma erosão crescente da confiança na ciência.
Segundo ele, embora exemplos como movimentos antivacina, negacionismo climático e teorias conspiratórias sobre a pandemia de covid-19 pareçam confirmar esse diagnóstico, os dados mais recentes sugerem exatamente o contrário.
Horton destaca resultados de duas pesquisas amplas – conduzidas, respectivamente, nos Estados Unidos e em 68 países – que indicam níveis elevados e estáveis de confiança pública na ciência e nos cientistas.
O problema, enfatiza o editor, não é a credibilidade da ciência em si — mas a forma como os próprios cientistas estão comunicando seus processos, suas incertezas e suas limitações.
Dados que desafiam o senso comum
A primeira evidência apresentada no editorial da Lancet é o levantamento realizado em outubro de 2024 pelo Pew Research Center com 9.593 adultos dos EUA.
O resultado surpreende:
- 76% dos entrevistados afirmaram ter “grande” ou “razoável” confiança de que os cientistas agem no melhor interesse do público.
- O número representa um aumento de três pontos em relação a 2023 e sinaliza uma recuperação após o desgaste observado durante a pandemia.
Em 2020, auge da crise sanitária, a confiança havia atingido 87%, caindo nos anos seguintes. No entanto, conforme Horton ressalta, o movimento agora é ascendente — e especialmente rápido entre republicanos – grupo que apresentou maior deterioração no período.
Os cientistas continuam também a superar outras categorias profissionais, como jornalistas, políticos, líderes empresariais e religiosos.
Em atributos individuais, pesquisadores são vistos como:
- Inteligentes (89%);
- Honestos (65%);
- Comprometidos com a solução de problemas reais (65%).
O editorial reforça que esse fenômeno não é uma particularidade dos EUA. Horton cita outro estudo, coordenado por Victoria Cologna e colegas, publicado na Nature Human Behaviour em janeiro de 2025, que investigou atitudes em 68 países (dentre eles o Brasil), com mais de 71 mil respondentes.
O resultado é categórico: a confiança global nos cientistas foi classificada como “moderadamente alta”, com média 3,62 em uma escala de 1 a 5. Nenhum país registrou nível “muito baixo” de confiança.
Além disso, 75% dos participantes concordaram que o método científico é a melhor forma de verificar hipóteses — sinal claro de apoio às bases do pensamento científico.
Para Horton, essas evidências contrariam a ideia disseminada — inclusive dentro da comunidade acadêmica — de que o público se afastou da ciência.
Ao contrário, os dados mostram uma atitude predominantemente favorável, com nuances culturais, sociais e políticas que merecem atenção, mas não sustentam um diagnóstico de “crise”.
O verdadeiro ponto fraco: divulgação científica
Se a confiança nos cientistas permanece alta, por que persiste a sensação de distanciamento entre ciência e sociedade? Horton identifica um ponto sensível revelado no estudo do Pew Research Center: apenas 45% dos americanos consideram os cientistas bons comunicadores — uma queda significativa em relação a 2019.
É neste ponto que o editorial assinado por Horton muda de tom e passa a discutir a urgência de repensar como a ciência se comunica. Inspirado pelo livro “In a Flight of Starlings” (Penguin Press, 2023), escrito pelo físico italiano e Nobel Giorgio Parisi, Horton argumenta que comunicar resultados não é o suficiente.
Giorgio Parisi propõe algo mais ambicioso: mostrar o processo científico, com suas incertezas, impasses e surpresas.
Principais aspectos sobre comunicação abordados no editorial da Lancet
- Transparência do processo científico: Parisi defende que cientistas não devem apenas divulgar conclusões, mas explicar como chegaram a elas — e Horton endossa essa visão.
- Valorização do inesperado: O livro de Parisi mostra que o avanço científico é frequentemente guiado por descobertas imprevistas; relatá-las aproxima o público da dinâmica real da ciência.
- Reconhecimento de limitações: Cientistas podem parecer arrogantes quando transmitem certezas absolutas; assumir incertezas fortalece a credibilidade.
- Ciência como cultura, não apenas técnica: Parisi insiste que a ciência deve ser defendida não só pelos benefícios práticos, mas por seu papel cultural, como forma de enxergar e interpretar o mundo.
- Risco da “ciência como magia”: Quando a ciência é apresentada como algo inacessível, o público tende a buscar explicações alternativas — muitas vezes irracionais.
- Exemplo pessoal como narrativa: Parisi usa episódios de sua própria trajetória para explicar conceitos complexos; Horton sugere que mais cientistas adotem estratégias semelhantes para reduzir a distância com o público.

Por que essa discussão importa?
O editorial de Horton é, ao mesmo tempo, uma crítica à narrativa de “crise de confiança” e um alerta para um problema real: a divulgação científica ao grande público continua insuficiente para acompanhar as expectativas e os modos de consumo de informação no século XXI.
Ao analisar pesquisas robustas e referências intelectuais contemporâneas, Horton mostra que a confiança existe — o que falta é aproximação, clareza, humildade epistemológica e capacidade de construir pontes entre ciência e sociedade.
Os estudos citados no editorial da Lancet:
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Pew Research Center (2024)
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Pesquisa com 9.593 adultos nos EUA. Conclusão: confiança pública em cientistas é alta e está em recuperação após a pandemia. Diferenças partidárias persistem, mas com tendência de recomposição. Atributos de inteligência, honestidade e orientação ao bem público são amplamente reconhecidos.
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Cologna et al., Nature Human Behaviour (2025)
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Estudo em 68 países com mais de 71 mil pessoas. Confiança global em cientistas foi “moderadamente alta”. Competência recebeu a nota mais elevada; abertura, a mais baixa, mas ainda positiva. A maioria considera o método científico a melhor forma de testar hipóteses.
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Giorgio Parisi, In a Flight of Starlings (2023)
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Livro que inspira a discussão final. Defende maior transparência metodológica e crítica ao tom de superioridade ocasional da comunicação científica. Posiciona a ciência como parte essencial da cultura, e não apenas como geradora de tecnologias úteis.
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