
Diabetes, vermes e um precedente preocupante
Especialistas reúnem recomendações sobre como combater desinformação nas redes após condenação de divulgadoras que desmentiram nutricionista

Duas divulgadoras de ciência foram condenadas por desmentirem um nutricionista que, em sua página no Instagram, associara o diabetes — condição em que o organismo não metaboliza de forma eficiente as moléculas de açúcar (glicose) no sangue — a vermes. Na sentença, foi exigido que as divulgadoras apagassem sua publicação, sob pena de multa de R$ 100 por dia de descumprimento, e que pagassem R$ 1 mil em danos morais ao autor das postagens. A defesa ainda pode recorrer da decisão.
A decisão foi proferida pela juíza Larissa Boni Valieris, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível de São Paulo, em uma ação movida pelo nutricionista André Luiz Lanca contra o perfil NuncaVi1Cientista, mantido pela bióloga Ana Bonassa — que realiza pesquisas sobre o metabolismo do diabetes — e a farmacêutica Laura Marise.
Em julho de 2023, Bonassa publicou um vídeo — agora apagado por ordem judicial — na página do NuncaVi1Cientista no Instagram, com um print do perfil do nutricionista ao fundo, explicando como o diabetes realmente funciona e como pode ser tratado.
No meio da gravação, ela se apresenta como cientista e diz que “está aqui para ajudar vocês a não passarem pelo que esse moço passou”, referindo-se ao comentário de um seguidor do canal NuncaVi1Cientista que perdera a mãe “porque ela abandonou o tratamento de diabetes e acreditou em protocolo de desparasitação”.
A gravação foi feita após o nutricionista ter publicado um vídeo com a chamada “Diabetes é Verme”. Na legenda, ele escreveu: “a desparasitação natural mata mais de 100 tipos de vermes, eliminando toda e qualquer possibilidade de doenças. Conheça nosso protocolo e apaixone-se”.
As divulgadoras usaram a caixa de comentários da publicação para tentar alertar o nutricionista de que a informação era falsa, mas foram bloqueadas.
Lanca alegou à Justiça que tentou derrubar o vídeo das divulgadoras com uma denúncia de propriedade intelectual no Instagram, mas o pedido foi negado. Ele argumentou ainda que Bonassa lhe havia imputado a “morte de seus clientes e seguidores” e que não buscava a retirada dos argumentos e críticas, mas sim a retirada das fotos, imagens e informações, pois sua imagem e honra estariam sendo violadas, de acordo com o texto do processo movido por Lanca, ao qual a reportagem teve acesso.
Em contestação, Bonassa argumentou que todos os dados de Lanca divulgados em seu vídeo — como nome, cidade em que mora e registro do Conselho Regional de Nutricionistas (CRN) — estão disponíveis no perfil público do autor, sendo acessíveis a todos. Afirmou ainda que não atribuiu ao nutricionista a morte de pacientes.
De acordo com a divulgadora, seu perfil foi mostrado “em razão de o tratamento por ele oferecido não ser corroborado pela ciência”.
No entanto, ao analisar o caso, a juíza entendeu que a divulgadora “não agiu com a necessária cautela, incorrendo em culpa ao divulgar vídeo com o uso não autorizado dos dados” do nutricionista, apesar de não ter má intenção.
“Restando evidenciado que a liberdade de expressão foi exercida pelo réu de forma a acarretar prejuízos morais ao autor, surge o direito à indenização correspondente”, anotou na sentença, que é pública.
Na visão da magistrada, houve dano moral, considerando a “situação de vergonha e tristeza a que fora submetido o autor do processo, em razão da conduta do réu em publicar, sem autorização, seus dados em vídeo junto a rede social de amplo alcance”.
Ao decidir o valor da indenização, porém, a juíza ressaltou que “as postagens do autor sobre curas e teses [são] no mínimo duvidosas.”
Precedente preocupante
Ao Science Arena, a advogada Ana Brás de Campos disse que a decisão surpreende e pode abrir um precedente preocupante, limitando os esforços de combate à desinformação por parte de jornalistas e divulgadores científicos.
“Causa estranheza que o mérito do processo não tenha sido a veracidade daquilo que o nutricionista estava divulgando, mas sim se, ao ser desmentido em uma rede social, sua honra e imagem estariam sendo violadas”, afirma Campos, que atua no direito cível e acompanha de perto o caso das divulgadoras, embora não esteja envolvida na defesa.
“A juíza se apegou à interpretação de que reproduzir o conteúdo de uma rede social sem autorização em outro perfil era injustificável”, comenta Campos. “Não importa que o perfil, com ideias perigosas para a saúde pública, estivesse aberto para qualquer pessoa ver.”
Também chamou a atenção o baixo valor da indenização, “o que sugere que a juíza poderia não estar tão certa de sua decisão”. De acordo com Campos, a juíza ponderou o direito à liberdade de expressão das divulgadoras científicas contra o direito à personalidade, intimidade e vida privada do nutricionista.
“É importante que o espaço à crítica seja preservado”, afirma a advogada.
Para a doutora em bioquímica e especialista em jornalismo científico Graciele Oliveira, presidente da RedeComCiência (entidade que reúne jornalistas, assessores de imprensa e divulgadores de ciência de todas as regiões do Brasil), a decisão coloca em risco o trabalho de profissionais que atuam no combate à desinformação e notícias fraudulentas (fake news).
“Como ficam os jornalistas e as agências que fazem fact-checking [checagem de fatos]?”, questiona Oliveira, da RedeComCiência.
De acordo com ela, a RedeComCiência está se articulando com parceiros para elaborar uma cartilha com orientações sobre direito autoral e caminhos que jornalistas e divulgadores podem seguir em caso de processo ou assédio judicial – definido como o uso de medidas judiciais com efeito intimidatório contra o jornalismo, em reação desproporcional à atuação jornalística em temas de interesse público.
“Por sermos uma instituição sem fins lucrativos, não dispomos de verba para apoiar nossos membros em questões jurídicas”, informa Oliveira. “Por isso, estamos em contato com parceiros que possam nos ajudar a construir uma rede de apoio para jornalistas e divulgadores nesse sentido.”
Por ora, Oliveira recomenda que tanto jornalistas quanto divulgadores científicos verifiquem sempre a autorização e o licenciamento de conteúdos de terceiros que pretendem usar, busquem orientação de instituições que lidam com direito autoral para se proteger e verifiquem como agências de fact-checking costumam se comunicar.
“Não me supreende”
O ortopedista Cadu Viterbo já perdeu a conta de quantas notificações extrajudiciais recebeu nos últimos meses. Ele trabalha com divulgação científica na área da medicina do esporte e frequentemente precisa desmentir ou esclarecer informações falsas ou incorretas, proferidas por outros influenciadores, sobre suplementos alimentares e terapias milagrosas para emagrecimento ou ganho de massa muscular, visando a venda de produtos e cursos.
“Não me surpreende o que aconteceu com as meninas do NuncaVi1Cientista”, ele diz. “Venho passando por situação semelhante há alguns meses.”
Conforme seu perfil no Instagram cresceu — hoje Viterbo tem pouco mais de 40 mil seguidores — e seus vídeos ganharam mais destaque, ele passou a receber notificações extrajudiciais e a ser alvo de processos movidos por indivíduos que, por se sentirem ofendidos ou expostos em seus vídeos, exigiam reparação por difamação, calúnia ou uso indevido de imagem.
“Muitas pessoas se expõem nas redes sociais com informações falsas ou incorretas o tempo todo, mas quando as confrontamos, alegam que sua privacidade foi violada e que não autorizaram a republicação de seus conteúdos”, afirma Viterbo.
“É a tática que usam. Contam com um aparato jurídico pronto para agir contra aqueles que atrapalham seus negócios”, diz Viterbo.
Desde então, o ortopedista vem tomando alguns cuidados em seus vídeos. “Tento focar especificamente no conteúdo das mensagens, borrando a imagem e os dados de terceiros para evitar que sejam identificados. Ainda assim, um deles se reconheceu em um vídeo meu e agora está me processando.”
Em nota, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) manifestou indignação pela decisão:
“Na internet brasileira, existe um vasto ecossistema de ‘influenciadores da saúde’ dedicado a vender soluções estapafúrdias para doenças que deveriam ser tratadas com medicina de verdade. (…) Certamente o Judiciário poderia fazer o seu papel de proteger a população contra estes “influenciadores” que podem causar muitos danos à saúde da população. (…) O Judiciário, portanto, não pode ser complacente com as mentiras. Elas matam.“
A reportagem tentou contato com Ana Bonassa, mas não obteve retorno.
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