
Do laboratório à vida real: como dados de pacientes ampliam a eficácia dos tratamentos
Informações coletadas em hospitais e prontuários ajudam a avaliar medicamentos caros, monitorar epidemias e guiar políticas de saúde pública

Em março, quando o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a oferecer Zolgensma, usado no tratamento da atrofia muscular espinhal (AME) tipo 1, doença infantil rara que atrofia os músculos de crianças e pode ser letal, e um dos medicamentos mais caras do mundo, o Ministério da Saúde fez um acordo com a Novartis, fabricante do medicamento: só pagaria os R$ 7 milhões se ele funcionasse.
O problema não era só o custo. Devido à raridade da doença, que afeta 0,01 por cento da população, e ser aplicada em pacientes de até dois anos, os estudos clínicos da Novartis contaram com um número reduzido de participantes, o que limita a generalização dos resultados.
“O setor privado pode gerenciar os riscos, mas para que o setor público adote terapias de alto custo é preciso ter segurança de que ela funciona”, ressalta o farmacêutico Nélio Cézar de Aquino, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Aquino coordenou a elaboração do Guia de boas práticas para estudos de dados do mundo real, publicado pela Anvisa em 2023.
Para avaliar o medicamento, a Anvisa está acompanhando as crianças tratadas com base nos dados dos prontuários médicos, os chamados dados do mundo real, informações obtidas a partir do atendimento cotidiano, fora das condições controladas de ensaios clínicos.
A força dos dados no combate à pandemia
“Durante a pandemia de covid-19 no Brasil, a abordagem permitiu mostrar, em tempo real, o número de casos e a chegada de novas cepas, quando aumentava o número de pessoas infectadas”, relata a pesquisadora em saúde pública Érica Tatiane da Silva, da Fundação Oswaldo Cruz em Brasília.
Os dados também mostravam o efeito das medidas de mitigação, como a queda no número de casos após a vacinação, o impacto do isolamento social e do uso de máscaras. A maioria dos dados foi fornecida pelo SUS e analisados por um grupo de pesquisadores de diversas instituições, chamado pela Coalizão Covid-19,
Segundo a pesquisadora, as fontes de dados eram variadas: registro de pacientes, estudos observacionais (que não usam grupo controle), prontuário eletrônico, registros de mortalidade e doenças. Podiam ser nacionais, estaduais ou locais, fornecidos por hospitais públicos ou privados.
“O Ministério da Saúde já fazia a vigilância de doenças respiratórias com dados do mundo real desde 2012, por isso estava preparado quando a pandemia chegou”, argumenta Silva, que monitorou os casos de gripe (influenza), verificando o número de hospitalizações e óbitos e a prevalência da doença ao longo do tempo em diferentes faixas etária e regiões, além de verificar a eficácia da vacina.
Outra fonte de dados ainda pouco explorada são os dispositivos móveis, como os usados por diabéticos para monitorar a glicemia. As informações, captadas pelo sensor fixado no corpo, são enviadas para o celular e armazenadas na nuvem da empresa. “Os dados podem ser incorporados pelo governo federal, depois de retirar as informações pessoais”, diz Silva.
Do ceticismo à confiança: como o uso de dados reais ganha espaço na saúde
“Não seria possível obter esses resultados com ensaios clínicos randomizados” ressalta a pesquisadora, se referindo aos estudos que distribuem os participantes de forma aleatória em grupo controle e de tratamento. “No entanto, os dados só podem ser considerados evidências que levem a uma conclusão quando são analisados em estudos criteriosos”, ressalta.
Embora sejam considerados padrão ouro nos testes de eficácia e segurança de tratamentos, eles podem levar anos e têm amostras limitadas pelo número e perfil dos participantes. “Além disso, nem sempre detectam eventos como efeitos colaterais raros, que aparecem na população geral”, acrescenta Silva.
Segundo a pesquisadora, os dados do mundo real permitem acompanhar os pacientes no longo prazo, verificando se resultados de laboratório se confirmam no dia a dia, qual o efeito do tratamento em diferentes populações e a adesão dos pacientes.
“Elas valorizam a qualidade de vida das pessoas, fornecendo informações sobre sua experiência”, observa.
Aquino informa que a abordagem é usada por agências reguladoras para ampliar indicações terapêuticas, retirar restrições de uso e atualizar bulas com novas evidências.
“Via-se com desconfiança as evidências do mundo real por não usarem grupo controle”, ressalta o farmacêutico. Quando a quantidade de dados disponíveis aumentou, os pesquisadores começaram a perceber que, em muitos casos, o resultado dos ensaios clínicos e dos estudos com dados do mundo real coincidiam.
A metodologia foi formalizada em 2016 no 21st Century Cures Act (Lei das Curas do Século 21), nos Estados Unidos, quando o termo “evidências do mundo real” foi formalizado pela primeira vez e reconhecido como uma forma de avançar o desenvolvimento e aprovação de novos tratamentos.
Desafios e futuro da integração de dados
Embora o Brasil tenha avançado nessa área, ainda há uma série de desafios para se construir plataformas que reúnem grande quantidade de dados de uma ampla variedade de parceiros em diversos países, como foi feito nos Estados Unidos e na União Europeia.
Um dos problemas, segundo Aquino, é que a falta de padronização dificulta a integração de dados e os hospitais privados nem sempre tomam a iniciativa de armazenar e compartilhar dados ou não tem a capacidade para processá-los abundância.
“Sem padronização, os dados não são reconhecidos pelas plataformas,” constata Aquino. Além disso, segundo ele, é necessário disponibilizar dados de origem mais variada e melhorar a transparência, indicando a origem dos dados de forma mais clara. Silva cita outro desafio, a formação de profissionais qualificados para lidar com a análise, o tratamento e a segurança dos dados, além da tecnologia necessária.
“A Rede Nacional de Dados em saúde [RNDS] está trabalhando para elaborar padrões que permitam relacionar dados de diferentes fontes” diz Aquino, um dos integrantes da iniciativa. Isso pode ajudar a fazer uma análise mais completa do paciente, incluindo o atendimento na atenção básica, hospitalização, diagnóstico e tratamento.
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