
Polilaminina e os caminhos para regenerar a medula
Após 25 anos de pesquisa, substância desenvolvida na UFRJ mostra potencial para restaurar movimentos em pacientes com lesões medulares completas

Uma substância desenvolvida em laboratório por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pode representar um novo paradigma no tratamento de lesões medulares, condição ainda sem terapias efetivamente regenerativas na medicina convencional.
Batizada de polilaminina, a molécula é uma forma reconstituída da proteína laminina, essencial na organização do sistema nervoso durante a embriogênese.
Ao recuperar sua estrutura polimérica natural em laboratório, os cientistas conseguiram que a polilaminina formasse uma rede tridimensional capaz de induzir o crescimento de axônios e reestabelecer conexões nervosas.
Um estudo clínico inédito
Os primeiros resultados em humanos foram publicados como preprint no medRxiv em fevereiro de 2024. O estudo foi conduzido com oito pacientes que sofreram lesões completas da medula espinhal, condição que, historicamente, apresenta chance de recuperação motora inferior a 15% sem intervenção.
Os participantes receberam uma única injeção intraparenquimatosa de polilaminina dentro de um intervalo médio de 2,3 dias após o trauma.
Dos oito voluntários, seis sobreviveram e todos demonstraram recuperação de contrações motoras voluntárias abaixo do nível da lesão, algo considerado sem precedentes em quadros desse tipo.
A recuperação foi documentada por meio da escala International Standards for Neurological Classification of Spinal Cord Injury (ISNCSCI) e de potenciais evocados.
Um dos participantes, Bruno Drummond, tetraplégico após um acidente de carro, foi um dos primeiros a manifestar melhora.
Evidências consistentes em modelos animais
Antes de avançar para os testes em humanos, os pesquisadores reuniram um sólido conjunto de dados experimentais. Em artigo publicado na Frontiers in Veterinary Science (2025), a equipe testou a substância em cães paraplégicos com lesões crônicas.
Os resultados apontaram melhora funcional significativa, especialmente quando combinada a adjuvantes como GDNF (fator neurotrófico derivado de células gliais) ou chondroitinase ABC, que quebra a matriz cicatricial.
Estudos anteriores com roedores também mostraram que a substância reduz inflamação, limita a perda tecidual e promove regeneração axonal em múltiplos modelos de lesão medular.
Obstáculos regulatórios e científicos
Apesar da empolgação, a transição da bancada para o uso clínico enfrenta barreiras. O laboratório Cristália, parceiro no desenvolvimento, aguarda autorização da Anvisa para iniciar ensaios clínicos regulatórios de fase 2 em hospitais públicos paulistas.
A Anvisa afirma que ainda faltam dados complementares dos estudos pré-clínicos, sobretudo em relação à estabilidade farmacológica e segurança reprodutiva.
“Estes estudos são indispensáveis para avaliar se o produto pode seguir para fase de teste em seres humanos”, declarou o órgão em nota enviada a veículos jornalísticos.
A polilaminina tem maior efetividade quando aplicada em até 72 horas após o trauma. O impacto em lesões crônicas ou degenerativas ainda precisa ser testado em estudos mais amplos.
Além disso, o entendimento completo de seu mecanismo de ação, se depende apenas da estrutura da matriz extracelular ou se envolve modulação celular direta, ainda está em construção.
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O que é laminina?
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A laminina é uma proteína fundamental da matriz extracelular, especialmente presente durante o desenvolvimento embrionário. Ela atua como uma espécie de “andaime” biológico, promovendo a adesão celular, o crescimento de neurônios e a formação de conexões entre células do sistema nervoso. Em adultos, sua presença é muito mais limitada, e ela raramente aparece em áreas lesionadas do sistema nervoso central.
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Como é produzida a polilaminina?
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A polilaminina é uma versão polimérica e estável da laminina, criada em laboratório a partir de proteínas extraídas da placenta humana. O processo foi desenvolvido por cientistas da UFRJ, que conseguiram restaurar a estrutura natural da laminina, permitindo que ela voltasse a formar redes tridimensionais, semelhantes às encontradas no corpo durante o desenvolvimento fetal.
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️Quem pode se beneficiar?
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Inicialmente, o tratamento com polilaminina foi testado em pacientes com lesões medulares completas e agudas — ou seja, com interrupção total dos movimentos e da sensibilidade após trauma, tratados em até 6 dias após o acidente. Em estudos com animais, também foi observado algum benefício em casos crônicos, quando associado a terapias adjuvantes. Contudo, mais estudos são necessários para definir sua eficácia em diferentes estágios e tipos de lesão.
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Qual o papel da placenta?
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A placenta é uma fonte rica de laminina, especialmente durante a gestação. Como órgão transitório que conecta o feto ao útero materno, ela contém altos níveis de proteínas que favorecem o crescimento e a diferenciação celular. Os cientistas extraem essas proteínas para fabricar a polilaminina — aproveitando uma matéria-prima abundante e que normalmente seria descartada após o parto.
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